quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

o meu jardim

novo ciclo. a vida está a chegar. as amendoeiras estão cheias de flor. os pessegueiros seguem-lhe as pisadas bem de perto. as outras árvores preparam os rebentos. nas rasteiras, os malmequeres florescem uns de amarelo, outros de lilás. são lindos. a alfazema não tem flor mas já ganhou um ar novo, limpo. até as daninhas se preparam para integrar este jardim, alindando-se e pavoneando-se em exuberância escondendo-nos que mais tarde irão definir e ditar o seu espaço.
o sol brilha e o ar fresco torna o ambiente morno. a sombra não faz falta.
os pássaros cantam ao longe, mesmo assim bem mais perto que as betoneiras ou tractores que ouço distantes. bucólico, não sei lá muito bem o que isso é, mas é bonito. até o som do aspirador da mulher a dias e o som de torcer da máquina de lavar ficam bem neste quadro. falta referi-me ao ladrar parco dos cães e ao som da lixadeira desgastando o metal que vem lá do cimo do monte.
o relógio canta a 5 horas.
os putos do jardim de infância não cantam mas fazem um coro melodicamente afinado e que, eventualmente, por uma razão genética, sejam em que lugar do mundo estiverem e sejam quais forem os elementos constituintes, soa sempre  mesma melodia.
sossego é isto mesmo, bem diferente da ausência de ruído. sossego é a possibilidade de identificarmos os diferentes sons colocados harmoniosamente no espaço como um pulsar da vida no sentido mais biológico e ecológico dos termos.
amo este fim de tarde revigorante. distinto e diferente das porcarias em que me envolvi até à pouco. devem ter tido um efeito catártico porque  agora estou no céu.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

... sereno, sê sereno...

Nos momentos de crise, as pessoas revelam-se surpreendentemente desagradáveis. Mostram o seu lado nefasto: egoísta, egocêntrico e caprichoso. Lê-se no olhar um carinhoso "cuida de mim" e um amargo de inveja "estou doente", ou será o contrário, o acre pânico "vou morrer?"  O fel da morte.

Nós perdemos a admiração pela pessoa e não nos importamos que morra. Melhor, sabemos que morrendo agora teremos admiração pela sua vida. Daqui a pouco esgotaremos a réstia de consideração que merece. Mais adiante não aguentaremos mais; o que significa "morre depressa".

Meu sogro pena-me. Sinto-lhe o fim que não desejo, mas sei que caminha para a morte. Escolheu, é este o termo correcto, escolheu a demência para enfrentar o momento. Ignorar a morte, centrar-se na dor e escravizar a atenção de todos é a estratégia que vive. Escolheu a demência como opção de vida.

Escravizou a mulher como o mesmo direito autoridade de um senhor feudal. Tornando-se-lhe filho controla-lhe a vontade. O inverso disto tudo também é verdadeiro e embora eu não o saiba descrever, mas acontece.

Eu acho, melhor, sinto que devo fazer alguma coisa. De algum modo acredito que estar consciente lhe prolongará a qualidade de viver, mas não sei como fazer e quando tento magoo. A impotência para ajudar é um sentimento devastador.

Há momentos em que ajudamos pela serenidade; no meio do pânico um olhar e um respirar sereno é o melhor apoio que se pode obter. Acalma, relaxa, serena....

Espero que isto seja verdade.


(iniciado no final de Janeiro e concluído em 22.02.2011)

Olá.

Hoje vou morrer. É simples. É mais ou menos como desligar um electrodoméstico qualquer, só que mais fácil. Não preciso carregar em nenhum botão. Morre-se e pronto. Está-se morto. E agora, perguntamos? E agora nada  - é a resposta. Está-se morto e pronto: não há nada a perguntar, não há nada a fazer, não há nada com que preocupar é um sossego indescritível, não há palavras para o descrever. Deve ser por isso que lhe chamam sossego de morte.

Podemos deslocar-nos, pairando, vislumbrando outras existências sem pressa, sem sentimentos, sem intenção com os e fossemos um folha sustentada na brisa do vento que passa.

É uma inexistência transportada pelo acaso, sem sentidos e sem sentido e se o tiver não o descortino.

Estou morto e já tinha morrido algumas vezes, embora não desse conta.

Não há homem da gadanha para nos importunar com a sua negrura, nem a ordem silenciosa para o seguirmos. Gostaria de ver esse personagem porque sempre tive muita curiosidade por lhe olhar cara a cara e saber se aquela sombra escura alberga um rosto enrugado e carcomido, uma caveira ou a ausência.
Acho que o autor da garatuja não sabia o que desenhar e pimba, pintou-o de preto, negro de desconhecido, de morte e de medo. Teve engenho ou sorte porque assustou gerações de vivos e aguçou a curiosidade de mortos. Quanto aos mortos, não se pode falar de gerações porque não se reproduzem, só inexistem.

Encontro vários que estão mortos sem que o saibam. Morreram aos poucos e não deram conta. Foi o que me aconteceu a mim. Distinguem-se pelo olhar, pelo pensamento e pela fome de vida que desconhecem. Vivem no limbo das recordações e não passam de almas errantes levadas pela brisa para lugares de nada e coisa nenhuma que não existem. A rotina é a réstia de vida que lhes chega das recordações. Vegetam. Não sabem mas estão mortos.

A morte é alívio, é paz e pode ser tão sedutora que até assusta. Leva-nos a um ponto de não retorno e apaixonamo-nos. Quem diria que nos podíamos apaixonar pela morte? Leva-me contigo, transporta-me no teu colo. Estou pronto! Olá.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Há dias...

Há dias que entristecem por mais que linda que seja sua luz, por mais belo que seja o canto dos passarinhos, por mais admirável que seja o sorriso das flores e por mais aconchegante que seja o morno ameno dos raios de sol.

Há dias que custam tanto a passar. Arrastam-se em nós de um modo entediante, enjoativo até, e ostensivamente meneiam-se só para nos mostrar que têm o direito a existir com o mesmo espírito e expressão de insinuante desafio de uma perrice de criança.

Há dias frouxos, sem história e sem nada para contar. Apresentam-se como emplastro atormentando-nos com o seu direito à presença.

Há dias que não deviam existir. Hoje é um desses dias.

Gostaria de saber construir dias, dar-lhe cor, som e voz. Gostaria imenso de me enamorar deles, cortejá-los, ser cúmplice do seu acontecer, acarinhá-los e senti-los na sua essência de intimidade que nos faz supor vivos e agradecidos por mais um dia.

Lembro-me disso, de ter essa arte, como algo distante e longínquo que já nem merece ser lembrado. Já foi! Perdi qualquer coisa e não sei bem o quê mas faz-me falta.
... perdi a vida ...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Cansa-me...

Cansa-me morrer devagarinho. Dói-me o que passou, magoa-me o que há-de vir e mata-me o que sinto agora. Define-se a agonia.

É um nó que não se desata, cegamente apertado em si próprio, tão apertado que fica num minúsculo grão, caso a vida, ainda que metaforicamente, fosse um fio.

Já não me lembro de estar bem, sorrir para a vida de braços abertos, convidando-a a chegar-se e aconchegar-se e mostrar-lhe o meu desejo de conviver com ela.

Já não a quero ver porque vem de negro, cheirar porque tem odor a morte, degustar porque sabe a fénico. "Vai-te embora, não te aproximes", grito íntimo comigo mesmo, deixa-me em paz e que um raio me parta bem depressa.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Um momento...

A morte gosta de sentar-se na margem da vida, apreciando-a enquanto passa, como se fosse um rio. Mantém, a morte, a vida, mirando as manifestações que esta lhe proporciona. Que vê a morte no rio, de tão singular que justifique essa admiração e esse arrebatamento pela vida? Ninguém sabe, nem ela. Não costuma pensar nisso. Tudo indica que o movimento só por si atrai a atenção, tal como a corrente de um rio. Se corre calmo, relaxa. Se jorra em torrente, tem força e pode assustar. Mas o som do rio, esse é que arrebata, tem água, tem ar e tem o som da vida orgânica. É isto que fascina a morte. Quando a vida não corre a morte enfastia-se e vai-se embora deixando-a para trás.
A vida, sem sentido, extingue-se a si mesma abandonada pela morte.
Pode morrer-se todos os dias com a morte bem longe e de costas voltadas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Vida minha

Vida minha, já não quero agarrar-te... quero viver-te com a fluência (des)regulada com que aconteces.
Vida minha, já não te peço nada porque me angustias na espera de ver passar o desejo e me obrigas a alterar as preferências.
Vida minha, já não te exijo mais nada porque me cobras nas consequências que plantas como estacas no meu caminho.
Vida minha, já não quero agarrar-te porque me abanas e sacodes, arrastando-me para destinos que só tu conheces e nem sempre me desvendas.
Vida minha, já não quero sonhar-te porque me adormeces para ti.
Vida minha, também já não quero amar-te porque vandalizarás o meu amor só para me mostrares que és única e sem amarras,
Vida minha, já não te possuo porque não intimas comigo os teus segredos e sentimentos mais profundos.
Vida minha, vive-te a ti mesmo, passeia-te pela minha existência e seremos cordiais quando nos encontrarmos.
Vida minha, quero-te bem.