segunda-feira, 30 de setembro de 2013

à janela

aquele amor perfeito
com que iluminaste a janela
a cada dia que a espreito
por ele te vejo nela
então sorrio, para ela
um sorriso que é teu
flor da minha janela

introspeção

no reboliço de uma conversa
de mim-para-mim, aprendi

recostei-me no silêncio
sem tempo
que deixei em paz
sabia que ali devia estar

tudo o que aprendi
sempre esteve comigo
sem o saber

palavras

serão eternas as palavras
as nascidas do teu nome
as crescidas em teu nome
que os dias guardam
memórias, imortalidades

palavras espalhadas no ar
fossem dente-de-leão
palavras viventes no chão
fossem pedras do caminho

a imortalidade do dia
que eterno se fez
de palavras
em teu nome evocadas

bocejamar

então mar?
ainda bocejas?
onda a onda
ruidosamente

venho ouvir-te
gosto de ouvir-te
preciso ouvir-te
ver-te
só depois cheirar-te
e sentir a tua aura
a neblina
a frescura
a beira-mar

no caminho para cá
senti-te
teu chamamento
minha necessidade
amigos
um chama
outro precisa
nunca se sabe quem

e hoje bocejas
oh, se bocejas
preguiçoso
quem não te conheça
ver-te-á vigoroso
há vigor na preguiça
espraiaste tu
satisfeito

tu e eu
venturosos
bocejando
onda a onda
passo a passo
amigos
ruidosamente amigos

viver, como árvore

como árvore
enterro os pés na areia
que espreguiço como raízes

como árvore
preciso do fresco do chão
para viver

como árvore
embrenho os braços ao céu
para sentir o celeste

como árvore
preciso do divino ar
para viver

como árvore
ofereço-me pelo meu tronco
à poesia de amantes

como árvore
preciso de um coração de amante
para viver

meu dia

de tão estranho que me seja
lembrou-se de mim, o dia
teve-me, quis-me
amou-me como filho
rondou-me, libertou-me
deixou que lhe mudasse o curso
deixou-me aprisionar-me
deixou-me crescer, escolher
deixou-me gavinhar
sempre com a complacência
de quem olha amando, acaricia
não importa o concordar

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

desesperança

e depois, mateio-o
disse-o ela
tom de lamento sem confissão
doía-lhe tanto
a cada palavra sentia na mão
o cabo vibrando da lâmina entrando
no corpo que sentira seu.
cortou-lhe o peito, o olhar surpreendido
pânico de morrer.

e depois, era tarde
arrependimento, de nada valeu
se ainda pudesse
ofereceria ao golpe, o corpo
que sendo seu, nascera para sofrer.
tanta dor, tanto doer...

(a propósito do telefilme português E depois, matei-o)

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

morrimento

morrer-se por dentro
acontece antes do corpo

depois
seremos o que formos
mais que alguém sem uma parte
seremos quem sabe e quem sente
morta uma parte de si

o tempo da  metamorfose
o modo do renascimento

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

o sol

o sol
luminoso e quente
da felicidade
nasce no peito

quando se põe
pela razão de ser necessário
dá lugar ao conforto
que só a noite conhece

o sol
o astro sol
é a inspiração
sem a qual este texto
seria destituído de sentido

natureza da água

de toda a água
a da nascente, é a mais vigorosa
a do rio, a mais livre
a da chuva, a mais generosa
a do mar, a mais viva
a da nuvem, sonhadora
a da lágrima, a mais salgada

o u t o n o

o gesto que se me esvai das mãos
escreve outono
o-u-t-o-n-o
foge-me o sentido destas articulações
de dedos, de letras, de pensamentos
outono
ou tono
outo no
vá lá entender-se um corpo
anatomia de ossos, nervos e músculos
sem ideias?
vá lá entender-se um corpo
mergulhado, enrolado
em outono insignificado?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

fim

à beira d'água nascem os rios
à beira d'água despede-se o mar
para logo nos reencontrar
marulhando-nos como rios
que nem sempre correm
espraiam-se preguiçosos
quiçá temerosos
o vazio do acabar

sabe-se que o mar vai e vem
enganando-se perpetuadamente
ignorando que renasce nas marés
onda após onda

natureza pássaro

chilreiam os pássaros no nascer do dia
chilreiam os pássaros na ramagem das árvores
chilreiam os pássaros no entardecer
chilreiam os pássaros dentro do poema
aquele lugar que deus quis para eles
e que os poetas criaram inspirados neles

domingo, 22 de setembro de 2013

a vida, como um poema
um conto cheio de histórias
uma em cada dia
uma em cada verso
uma em cada parágrafo

sábado, 21 de setembro de 2013

não aos escritos
não às palavras, gastas
deformadas, de tão mal tratadas
encalhadas
por pregões, vendilhões
e galifões que as usam
em cânticos matinais
para escurecer o povo
do olhar até à alma
a quem levam o sol e luar
para hipotecar.
sequiosas criaturas
do sangue e das lágrimas
a quem confiámos
o céu que nos ofereceram
os infernos que agora temos

carrego nas mãos o mesmo que no peito
no corpo, às costas, no colo, no regaço
palavras sem dono,
palavras nunca amestradas
jamais dedicadas, palavras sem amo
como as verdadeiras palavras são
do vento, onde viajam
do ar, de que se proferem
do peito onde se sentem
da alma onde se fazem
uma a uma, sílaba a sílaba
para que nunca sejamos sós

que nos fizemos gregários como palavras
que nos concebemos como agregação de sílabas

fazem-se muros de palavras
pintam-se muros para as palavras
constroem-se palavras para os muros
quando o papel não chega
para a grandiosidade de escrever
de um punhado de areia
quando uma  montanha nos vai no peito

acolhi um olhar perdido
regressado não sei de onde
pronto para partir
soubesse ele o destino
soubesse ele onde pousar

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

o sol
a lua
tocam-se
pelas pontas
talvez dos raios
sem olhares

um olá
um adeus
algures
entre
um entardecer
e um anoitecer

terça-feira, 17 de setembro de 2013

fantasia

perfuma-me a tua voz de fresco ar
e leva-me pela mão
onde os contos ganham princesas
onde as bruxas sucumbem
onde o bem sempre sobrevem
por mais adulto que eu cresça

colhe minha alma de menino
embala-a pela tua voz
veste-lhe um personagem duma história tua
e deixa-a fruir que será feliz

marmóreo

esclerótico
aquele olhar tudo gelava
acre de branco
parecendo imaculado
era só branco
nenhuma cor estava
olhar de mármore
marmoreava

garatuja

desenhos à margem, no caderno de notas
insistentemente à margem, das notas
que desenhas, enquanto anotas
a tua liberdade, e nem notas

um pensamento, um ritual sem tento
em desenho, o teu momento
em que fugiste, em que voltaste
sempre por dentro
daquele registo, daquele diário
daquele desenho, onde anotas o tempo

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

despedida

quando ela lhe disse que ia regressar, ele não entendeu.
quando cruzaram olhares, ele gelou.
quando ela pousou o olhar no infinito, ele chorou.
jamais cruzariam os olhares
e ele jamais sentiria a mornidade do conforto

sobre hipocrisia

a hipocrisia não se combate, nunca se vence, tem pele de vítima.
a hipocrisia não se tolera; ideais e liberdade, desprezam-na.
quando associados à inteligência, mirram-na.
porém, à mais pequena distração surgirá colossal.
a mais daninha existência.

sabores do fado

sabem-me os lábios à ausência
a que me habituei
sabem-me os olhos à saudade
que nasceu comigo
sabem-me os dias à mingua
que o luar me deixou
sabe-me o tempo à aventura
que o partir me dói
sabem-me os sonhos ao reencontro
que o renascer pariu

à beira-mar

meu beijo descobriu-te
húmido frio
é da chuva, brincaste
sabíamos ser da neblina, do mar
hm, hm; enrolou ele
no seu tom de bem-estar

sábado, 14 de setembro de 2013

um pensamento escrito

mãe,

chego com um sorriso, sem pedido de perdão, sem declaração de amor e muito menos uma exposição de admiração. tudo o que tenho é um texto escrito ao ritmo do pensamento: um pensamento escrito para ti. não conheço nada mais espontâneo. não conheço nada mais bonito, nem nada que deseje mais para ti e para mim.

noto que te escrevo por "tu" embora te fale por "você", sem que use o termo que me ensinaste ser de tão má educação que o guardei na gaveta dos impropérios. terei ficado unilateralmente íntimo de ti e noto como tu sempre foste unilateralmente íntima de mim. neste pensamento seremos "tu e eu" ou "eu e tu" e o teu olhar angustiado dará lugar à expressão de marota cumplicidade ternamente feliz que tens para mim. nesse momento as dores passam-te, a idade desaparece-te e transformas-te numa espécie leve de bobo para me mostrares que brincar é bom e desejável, desde que as intenções sejam boas — a vírgula é tua e enfaticamente colocada e acentuada por ti.

isso, as intenções: o que pensamos, o que desejamos, a pureza no estarmos seja onde for. sabes que cada vez estou mais assim? e sorris de vaidade; não murmuras o valeu a pena porque pensas no consegui. é por isso que sorrio e sorrio na escrita destas palavras ainda não rasuradas nem revistas, nem na pontuação: espelham o espontâneo que tanto gostas. é mais natural, elogiarias e eu ouviria e sorriria; teria piada. hoje, entre ouvidos e sorrisos, faz-me todo o sentido.

mãe! tenho pensado na morte, não tanto pelo medo que tenha de morrer, mas é o meu medo que tu morras. engraçado, é que venho preparando a tua morte desde os meus 10 anos, talvez antes, ou um pouco depois, e embora sereno, ainda não estou preparado. é altura de me sorrires um burro velho não aprende línguas, e é verdade. também me dirás que todos morrem e só deus sabe como e quando, a que eu acrescento na sua infinita sabedoria, no meu mais silencioso sarcástico. tu, que não tens o ressentimento que eu sinto, sei que se ouvisses, os teus olhos, primeiro ficariam vagos e oblíquos ao chão, para depois se cravarem nos meus e golpearias o teu graças a deus muitas, graças com deus poucas e eu respeitar-te-ia impotentemente, sabendo que no fundo até a morte é natural.

sabes que houve tempos em que só tinha medo da minha morte? e tu rezavas, quase sempre com prazer, parecias e dizias-te pronta para o céu, ao passo que eu detestava rezar, saía-me algo mecânico como a tabuada;  sei que falo mas nunca sei o que digo e tenho de pensar nas palavras que acabei de proferir para lhes encontrar significado e nem sempre chego lá. hoje escrevo poemas e gosto de trocadilhos entre poemas e orações, entre rezas de declamações; o deus ganhou poesia, eu fiquei mais sereno. e tu manténs o mesmo olhar sobre mim, com que me fazes sentir ungido: e tu sabes que eu gosto e eu delicio-me com o prazer que colhes do meu gosto. mães e filhos são assim: impenetravelmente juntos.

já nos confessámos que o tempo urge: os nossos encontros serão menos, decrescentemente menos, e tornámo-los mais intensos; têm mais abraços, têm mais carinhos, mais toques, mais olhares cruzados. têm mais marotices, como quando eu tinha 5 anos e era assumidamente menino, sem saber como carinho de mãe faz crescer.

sei que ficarei magoado quando morreres, mas sei também que terás um beijo para me confortares, daqueles com que me curaste de tantas quedas e eu talvez consiga escrever-te um poema.

o meu sorriso mãe.

da génese das palavras

são os pássaros que trazem as palavras
aos pios, nos voos
aos chilreios, no alto dos poleiros
e nós dizemos palavras para os imitar

beira d'água

tenho vida de mar
infinito, de horizonte
meus meses oceanos
e os anos são ondas
ritmadas
de amplitude e força
desconhecidas

pês da primavera

primavera tem ímpetos
tem impulsos
primavera tem pássaros
e passarinhos
e muito desejo
ainda que destituído de p
como sol e flores
ventos, verdes e cores
tem abelhinhas e borboletas
zumbindo, rodopiando
a fertilidade das flores
o crescimento das árvores
e a reprodução
sempre a reprodução
e seus amores

primavera em setembro

a primavera faz-se de desejos
ideais. só depois se aproveita o sol
para a iluminar
e as palavras, para falarem dela
revelando as conversas dos pássaros
as flores despontam do verde
só porque querem participar
deste espreguiçar de vida
que vemos, porque procuramos.
o acontecer de primavera
ver-se-á melhor de olhos fechados
porque também há os aromas
sobre os quais ainda não falamos
e as juras de namorados.
era setembro.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

a morte

a morte. a morte chegou-me de manhã, com o nascer do dia, ainda antes de eu acordar.
instalou-se. estava instalada.
tinha um vestido vermelho e eu que nunca tinha reparado. eu aprendera que se vestia de negro  negro da morte  e, talvez por isso, nunca tenha notado a vermelhidão da vestimenta.
também me sorriu, o que teve em mim um efeito que poderia chamar-se encanto feminino. por isso não pude deixar de a olhar e, depois, de a apreciar, com o meu melhor olhar distante.
ela insinuava-se, sentada, tombava ora sobre um lado, ora sobre o outro, num rebolo das ancas sobre a almofada da poltrona. usou o sempre clássico cruzar de pernas, dançado e enfeitado por dois joelhos perfeitos. insinuava-se também  pelo olhar: ora tropeçante no meu, ora indiferente, como a ignorância.
minha pose era seráfica, hirta como um sírio, como aprendi com meu pai e sabia-me a castigo ou a alerta. por ali ficámos, estando: eu sonhava, ela instalava-se, mediamo-nos, cúmplices.
não fossem as modas dos tempos e teríamos ido ao encontro um do outro pedindo/oferecendo lume para um cigarro. mas agora seria um convite explícito para sairmos: os dois para um momento de intensa intimidade, no exterior, à porta de algo  neste caso do sonho  em torno de um cigarro que partilharíamos passa-a-passa.
acordei! tudo tinha passado, porém, estava cá tudo: o vestido vermelho, os olhares e o desejo de uma passa, também.
compreendi porque o cigarro mata.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

meu gato

o melhor riso de um gato arrebita-lhe os bigodes
para que lhe acentue os cantos elevados da boca.
é que os gatos não têm lábios. por isso não beijam;
lambem e continuam a sorrir aquele sorriso; de gato, claro.

o melhor riso do gato fecha-lhe os olhos
para que a gargalhada seja mais profunda.
por isso ronronam como só os gatos sabem.
a minha namorada não consegue ronronar mas vê-se gatinha
e cerra os olhos quando sorri. tal como os gatos
quer uma gargalhada profunda; de gato, claro.

o melhor riso de gato pode ser indecifrável.
efeitos da personalidade felidea, independente. por isso
criou o mito de dar: dá mios, dá saltos e dá-nos o prazer
de o termos ao colo, enquanto o gato sorri
como os gatos; enigmático e indecifrável, claro.

poema

tivera eu um útero
e far-te-ia renascer em mim

fora eu um jardineiro
e far-te-ia florir em mim

sou o bobo demente
sentado no mais cinzento dos cinzas
tu és a cor que me chega
e pedes-me que te pronuncie
como sílaba de poesia

verdadeiro deus

velhinha:
 meu deus, como nasceram as estrelas? foram semeadas? quem as plantou lá no céu?

deus:
 nem uma coisa nem outra. são obra da criação e foram criadas por ti e outros como tu.

narrador:
—  a beata velhinha sorriu. afinal deus tinha um humor divinal.

lengalenga

ao adormecer, sei
que viverei a história
que escreverei enleada
na que sonharei acordado
de dia, na companhia da janela
que quis ser minha e eu sou dela

pensamento solto

morreria todos os dias
se pudesse
pela tenrura do renascer

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

fazemos amor como loucos
é uma loucura, o nosso amor
ouvi ou li que só os loucos amam
os outros não desmancham a cama
e nunca engelham os lençóis

meu sonho

meu sonho, sempre grande
enquanto aprendia as letras sonhava
com irreconhecitude da minha caligrafia de adulto
enquanto aprendia a ler sonhava
com grandes públicos atentos
enquanto aprendia as outras matérias sonhava-me
mestre nas habilidades científicas, literárias e artísticas
...
enquanto escrevo um poema, sonho
com o convívio das nossas fantasias
enquanto escrevo um poema, sonho a fantasia
e por ele distendo meu sonho entre o aqui e o de lá

chove lá fora
pois, deixa chover
o sol cá de dentro espelhará
na chuva que sempre tropeça
nessa vidraça
e escorre pelo olhar, brilhando
ente o reencontro e a despedida

a ansiedade

tem um corte fatiado
fininha, meticulosa
insistente, persistente e fria
fria até aos suores; frios também
rói, moi, corroi
de um vazio transparente e solene
aloja-se entre os dentes cerrados
no franzido do rosto
no lado apertado do corpo
contraído até ao estalido
no estado dorido
da ansiedade

consome o bom dia
amarelece o sorriso
cheiro frio a perfeição
do mofo organizado
o mais perfeito pecado
a ansiedade

domingo, 8 de setembro de 2013

hoje quero meu dia botando fogo
fogo de língua
fogo de labareda
fogo de sol quente
tudo fogo amarelo, vermelho, luminoso
fogo quente de verão
hoje quero meu dia assim
enquanto eu sinto o fresco
do verde do meu jardim

sábado, 7 de setembro de 2013

mealheiro de rios

havia no mealheiro
o necessário para ter um rio
daqueles que chapinam, que nos ouvem
que se fazem ouvir e falamos
um rio rico e brilhante de prata bem limpa
um rio amigo que correria comigo até ao mar

naquele mealheiro eu guardava,
o sonho que sempre recordava
a cada moeda que lá amealhava

havia naquele mealheiro
o necessário para ser rio

tinha tanto de morte em mim que a vida se mudou por falta de espaço e eu morri.
equilibrei as as coisas, enxotei a morte, a vida regressou e fui renascendo.
então renasci.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

cumplicidade

pesquei um poema espelhado
no rio que te banhava
— há tanto tempo e não desamo de ti
cintilou o rio
eu escrevi

traço de poesia

desenhei-te em traço de poema
vi-te à essência de ti mesma
envolvi-te em fantasia
daquela que me insinuaste
e te soltaste um beijo
um olhar
um sorriso
um abraço
um aceno
uma flor
...
tanto faz
ser-me-ás poesia

um desejo

tivera eu
um beijo teu
que o dia seria meu
o estardalhaço que faria, eu

fantasia

é frágil a vidraça da minha janela
por ela viajam os sonhos
ainda que feche as portadas
e tenha as cortinas cerradas

rio

o rio
para onde rio
riou-nos
sorrimos
as rimas
que rimos
tu ria(s)
eu ria
ainda rio
na beira do rio

dia

dia de tirar a respiração
inspiramos, inspiramos
queremos tudo, tudo dele
e guardarmos, bem para nós
soltos no suspiro
duma memória doce do horizonte

a luz que era da vela
fez a vela ser da luz
de outro modo não se veriam
uma e outra se pertenciam

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

minha alma bastarda seduz,
seduzida que vive por todo o desconhecido

conjugação

pela manhã deste-me um beijo
fresco de crocante e suculento, tudo junto,
bem polpudo como sempre
— logo dou-te mais — declaraste-me
— bommm, guarda-mos — pedi-te eu
— beijos não se guardam, dão-se 
dão-se sempre frescos, acabadinhos de sentir
querem-se aromatizados — ensinaste-me
então e aqueles apressados — indaguei
— são rápidos, são pequeninos — continuaste-me 
mas para serem beijados, têm de ser frescos
se recessos não são beijos
nem ósculos serão, que nem esses são ressequidos.
isso de que falas são tiques em molde de beijo
outras vezes são desfeitas
amordaçam e despeitam os agredidos.
beijo não cabe em "tupperware"
nem se conserva em frigorífico
beijo tem, sempre, aroma do momento
— e dos beijos que te dei — balancei
— foi nos teus beijos que aprendi o que sei — sorriste-me
no teu peito nasce a poesia que escrevo — escrevi —
... ainda que me chames poeta

poeta espécime

poeta só existe no estado independente
e nem da independência se torna refém.
é arisco, indomável e errante
transviado por natureza
solta poemas: assinala o caminho
que não o siga quem gostar do conforto

a poesia tem a beleza da aventura
vive de trepar o impossível e de pairar o infinito
e morre nos círculos das rotinas
por aí não há poetas

angústia

todos os dias sinto a infelicidade
de uma folha branca, de uma janela vazia
aguardando
que nela me verta que nela eu encontre
o sentido tresmalhado do dia

terça-feira, 3 de setembro de 2013

trajetos da tarde

i
não sou nada, por isso
quando olho pela janela
só encontro meu reflexo
todo o resto, eu invento

ii
destino de homem
que se foi fazendo bicho
é bicho-homem
corpo de homem
alma de bicho;
indistinto bicho

iii
a metafísica, a filosofia
e uma certa poesia
são modos de procurar
a felicidade
em dias de mau-humor

iv
ai,
como eu tenho algo para te dar...

v
vejo uma flor que cresce do chão
estica-se, balança-se, aproxima-se
o chão ajuda-a e eu sorrio-lhes
pateta da emoção...
não sou nada... nada...

vi
a primavera escreve-se nas árvores
e também nas flores
livros estampados de paisagens
com o mar, sempre o mar,
ao fundo
para onde todos os rios correm

vii
as folhas
amarelas-castanho de morno e de sol
libertam o outono
dançam ondulações de mar
(ainda o mar)
unem-se sem capas, algumas enrolam-se
outras rebolam, livres, porque é solta a poesia

viii
os amantes, como poetas, assinam nos troncos
querem a perenidade de um epitáfio

pé-de-orelha

puxa minha orelha
e lá encontrarás o último segredo
aquele que lá deixaste
ouço-o todos os dias

aventura

de todas as vezes que saí empenhei algo de mim
investimento na viagem iniciada para um incerto
visto como certo, de tão crentemente desejado
empenhei-me de todas as vezes que parti
levava numa mão a amargura; do errado
na outra, a convicção
trilhei em frente, fitado no horizonte
aquele mesmo que um dia libertei da linha

quadra

vagueiam as letras em teu nome
como no céu as estrelas
compõem palavras nós
amor, entrego-me a lê-las

Só o mistério chega inteiro ao fim.*
e desvanece-se
solta o vazio


*Almada Negreiros; in Textos de Intervenção


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

poeta d'água

poeta faz-se de água
nasce em água de útero
espraia-se em água de rio
vagueia em água de nuvem
escorre em água de chuva
renasce em água de mar
brota água de lágrima

beira-mar

cada onda volta uma folha
era o mar.
o vento
a inspiração da página seguinte
gravura prateada a sol.
o poema
o voo da gaivota, sempre gandaio
desenho dos ventos de poesia.

ainda o mar
na melodia de fundo
ao grito de gaivota que declama o poema
que a areia e a rocha aplaudem
enquanto a criança pequena
planta castelos na areia
que o mar os abrace
e o sorriso lhe aparece
então o poeta tece inutilidades.

leve

aprecio o nado dos peixes
aprecio o voo das aves
aprecio a leveza de ter os pés ao nível da cabeça

domingo, 1 de setembro de 2013

manoel

com quantos pássaros se escreve teu nome
que letras se usam para pintar o céu
quantos desenhos tem um poema
com que revelas segredos a deus
desrimando
rumando à poesia que quer ser criança
fantasia
sem "quantos" nem "comos"

a praia de todos

ela, a praia
nascera dele, o mar
e dela, a areia
é amada por eles, as gentes
que nela arejam os corpos
assolham a alma
exibindo o que têm
ora exuberantemente
ora em absoluta discrição
como ela, a praia
de todos, os momentos

amores

amor é doçura do tempo que chega em alguém, com a forma de vida
amor é uma ideia amadurecida em peito sonhador
amor é aquele colorido num arco do vento
amor é o cristalino da água na concha das mãos

meu futuro foi ontem, correu no pôr-do-sol
hoje foi passado que me chegou de presente

desconcertante

o sol partiu de manhã
agora que é tarde, ainda não veio
há bocado, que era noite, fez-me tanta falta