quarta-feira, 30 de outubro de 2013

intuitivamente

havia poemas nascidos
de quem ainda não escrevia
porque não sabia;
de quem sonhava e sonhava
sem paisagem e sem história,
via-se com uma pena
que da mão lhe saía, em linhas
encadilhadas em algos
a que dava voz.
os olhos moviam-se
para o céu, para si e para dentro
como acontece com os poemas
ele sabia
sem que soubesse porquê
ali havia poesia.

do estado das pessoas

ela abeirou-se
precisava saber se tudo estava bem
não estava, não estava...
nada estava bem
mas agora que se viram
tudo parecia melhor
e assim ficou...
melhor

sábado, 26 de outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

cega paixão

desejo pedir-te, mesmo suplicar-te que me ames
que me ames como se não houvesse mais ninguém
a cegueira da paixão não me deixa entender
como serei mais amado quando me escolhes de entre outros

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

biografia

minha biografia escreve-se de banalidades, como as letras que a integram. nasci a 04.11.1961 e sinto que desde logo me pularam de colo para colo: pais, tias e avós. fui deles e eles meus, por inteiro. durante 6 anos fui a única criança daquele reino de fadas mimentas que me fizeram sentir querido, lindo e inteligente. aprendi a ser príncipe, a ser ouvido; senti o conforto do colo e o prazer de trocar carinhos pelas mãos, pelos sorrisos e pelas palavras, em noites à lareira, enquanto me crescia a fantasia dos contos lindos de impossíveis, do meu avô. ouvi-os vezes sem conta e nunca se repetiram. que lindos, dizia então; que poesia, lembro hoje.

o tempo impeliu-me a escrever fantasias. primeiro com um ardor dorido de adolescente (sempre apaixonado) em plena revolução. passei a jovem adulto, profissional de psicologia, competentemente adulto, que por um ímpeto sempre inexplicável pecava: perdia tempo escrevendo devaneios que obnubilariam qualquer adultez, os quais sempre fui encobrindo, não sei se por cobardia intelectual se por um desejo intrínseco de culto do secreto. foi um tempo de treino, talvez de experiência.

recentemente, já sem noites e sem lareira,  sem nevoeiros e sem manhãs,  sem mais nada para além da impetuosa necessidade de fantasiar, escrevi da minha alma os vagidos e as traquinices tal como os ouço e me tocam e dei por mim parindo-me a cada letra, verso a verso, umas vezes com a delicadeza brotante da nascente, outras com a crueza estrondosa do vagalhão, deixando emergir o que em mim sempre esteve e para a qual não encontro outro nome, senão mesmo natureza. foi então que me apropriei do advérbio que me define o modo e dele fiz nome meu; antónio assim d'oliveira.

solidão

a solidão dela fizera-se de abandonos
abandonos de memórias
primeiro as boas, depois as más
que antes de partirem escorraçaram tudo

um livro, só
um livro numa mesa
de pé de galo
ladeado de uma chávena, só
vazia de tudo
também havia uma caneta, só
e uma folha de papel
uma folha, só
quando chegou alguém
puxou uma só cadeira
sentou-se à mesa, só
de tudo debandou a solitude

dito e não dito

quando me olhaste: — doçura
eras meu mel

quando me sorriste: — bom dia
eras meu sol

quando soltei: — querida
gritava: — meu amor

quando te beijei: — bom dia
como desejava morder-te

terça-feira, 22 de outubro de 2013

frágil intelegibilidade

a fragilidade com que escrevi meu nome
como o constatei quebrável, sem que fosse cristalino
frágil; mole, sem que fosse moldável, sem que fosse flexível...

a fragilidade com que escrevi meu nome escorrente no papel
como tinta aguada, como gordura ao sol
sem forma, sem textura, sem mensagem

não entendo, porque não me aceito frágil

boa água

tanto espero e mais desejo
que meus olhos saibam dizer-te
o que eu não sei
o que não me perpassa os lábios
o que a garganta não desata
o que a língua não modela
a ideia que baralhei e não encontro
e na qual tropeço diariamente
constantemente

tanto espero e mais desejo
que meus olhos saibam contar-te
o rio em que minha alma se transformou
o prateado brilho, onde navegas
que em mim resplandece teu vogar
toque, corpo, água e sol
teu sorriso colorindo a janela
uma lágrima gritando
boa água

conversas ocas

foi tudo dito
tudo está dito
restam glosas e mais glosas
no mesmo tema
no mesmo assunto
sem nada acrescentado
sem nada mudado
sem novas vistas
falar e abafar silêncios
verborreia e mais verborreia
oiçamos o silêncio
entendamo-lo, sapientes

domingo, 20 de outubro de 2013

mudema

gosto das letras mudas
por mim, todas as letras seriam mudas
as palavras pronunciar-se-iam mudamente
com os olhos bem coloridos de expressão
os poemas seriam almados, plenos... enormes
os poemas seriam declamados com olhares

meu espelho

agasta-se dia a dia
o espelho em que me vejo
pica-se-lhe o espelhado
amarelece
ao ritmo das paredes onde se aninha
enquanto as rugas se lhe desenham
na imagem do espelhado
e no olhar que me reflete
vejo-lhe o brilho
que o espelhado imagina

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

nascente

onde a lua voa
e o pássaro passeia
onde as nuvens navegam
e a chuva caminha
onde as poças chapinam
e as crianças brincam
afaga-se a liberdade
e o poema corre rio

memórias

contam-se as memórias
uma a uma
sem contas, sem ordem
como a memória
sucedem-se
ligadas num punhado
fossem cerejas

assolham-se, limpam-se
alindam-se e guardam-se
tesouros sem tesouro
brilhos sem brilhantes
essência de existência
velam-se e ostentam-se
em pensamentos secretos
sorrisos enigmáticos
olhares perdidos

o indecifrável da compreensão

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

banho de vida

se te parece
que a vida te cai aos pés
não a pises
não a evites
não a ignores
sobretudo
nunca te lamentes
chapina nela
até te sentires mergulhado
de vida

trovoada

dormente
este céu de nuvens
espessas
penedos flutuantes
contundentes
quase ruidosos
quase faiscantes

tateei o luzente
simples
como um caminho
vadio
tinha aroma a tardio
despreconceituoso

um poema
talvez extraviado
ainda incompreendido
ansioso
para ser desvendado

fizemo-nos companhia
embrenhados na trovoada

o dia rompeu
não havia poema
nem eu

nós

teu dia chegou-me
perfumado de ventre
onde o sol nasce
meu dia enleou-se no teu
e conjugaste-nos com todos os segundos

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

verdade

assim
dispersa pela cidade
numa situação verdadeira
mente insustentável
fizeste-te de aragem
tal a tua ânsia de chegar
a todos, teus amantes
alguns indignos de ti
verdade
pela qual existem
muros e pássaros

pariu-me o vento
batizou-me o temporal
enchi-me do nada
do ar e voei
já que não podia andar
minha mãe chamava-me
cabeça-no-ar
compreendia-me

voto de humanidade

espero que a idade me cure
desta forma infiel de viver
não renascer em cada estação
não apreciar o vento e a neve fria

que eu ganhe cor e verdor
e ao ser homem seja alguém

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

desejo

se eu pudesse
correria até voar
rumaria com o vento
dançaria em teus cabelos
rebolaria em teus seios
abrigar-me-ia em teus dedos
confortar-me-ia em teu ventre
flutuaria no luar
voaria num só pé
brilharia como os rios
seria cristal sem tesouro

emociomar

deixem o mar destapado
o mar precisa-se aberto
cheio de água fervente
espuma tudo o que sente
vociferando encapelado
sintam o mar por perto
pois o mar é sagrado

fumar

o prazer de um cigarro
esfuma-se, no fumo
a memória aloja-se nos ossos
daí se solta
com o calafrio

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

desalento

caíam as mãos
peso do desapego
amargo da consciência
depois o corpo cansado
até para as mãos

que caíam
escorrendo pelo corpo
à frente dos braços
agora escorridamente longos
mais longos
tão longos que jamais abraçariam
e as mãos caídas, separadas
jamais se acariciariam

os anéis
tornaram-se largos
afastaram-se, impercetíveis

terça-feira, 8 de outubro de 2013

ídolo

sossega
o peito
pulsar
demais
pode ser
defeito

menina
corada
respiração
pesada
grito
engatilhado

pro herói
da banda
rosto
de revista
que canta
que dança
que artista
perfeito

não pulsa
demais
sossega
o peito

indecisão

vou
não vou
ainda
aqui estou
depois
de desejar
tudo
alcançar

se a poesia fosse um templo
os poemas seriam vitrais
contempláveis de dentro da capela

(baseado em Goethe; "Poemas são como vitrais pintados")

mais além

sentir-te é ir além dos sentidos
o mais além, sem distâncias
sentir-te a doçura da memória que te assalta
e te desconcentra
sentir-te o pensamento que me reservaste
e te contraria o momento
sentir-te a ligeireza com que te desprendes do dia
enleada te deixaste num detalhe de nós
sentir-te pelas incompreensíveis noções
de alma gémea, química, telepatia, seja lá o que for
sentir-te por algo que sinto como essência
do que chamamos amor
que nasceu de nós, cresceu
desmesuradamente, sem controlo
é o que sinto
e o que sinto diz-me que sei muito pouco
e o que sinto nunca se conjugou com medida e controlo

domingo, 6 de outubro de 2013

sorriso de pássaro

o sorriso num pássaro
tem voo e tem chilreio
tem olhar: primeiro um olho
depois o outro
tem distinção de plumagem
tem confiança: de se deixar mirar
e de vir comer às mãos
e não há alma que não lhe sorria

sábado, 5 de outubro de 2013

boa água

meu poema jamais se re-escreverá
jamais de repetirão as letras de que nasceu

o que minhas tristezas parem, não se escreve
e não há palavras para a insipiência deste sol peco

meu poema foi rio abaixo
boa água
por ali vogará
compondo-se no horizonte
onde os olhares se põem

viagem

segui a voz do cantar
acendi o sonho do poema
tocou no horizonte, a melodia
um pouco de mim não quer regressar

as viagens são assim

algo de nós por lá fica
algo de lá nos acompanhará, sem fim

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

urdêncios

um poeta vive nos silêncios
fios dobados, anovelados
deles urde poemas
em paciência de enxoval
em amor virginal, de entrega
um dia...

assolha-os ao tempo
ao vento
em silêncio, trauteando
um tesouro...

silêncios

silêncio, a soada que não se ouve
o silêncio escuta-se e entende-se
o silêncio de uma gargalhada
o silêncio da palavra
o silêncio do olhar
o silêncio do sorriso
o silêncio da tarde
o silêncio de um olhar sorrido num final de tarde
o silêncio de um poema
o silêncio de estarmos connosco
em silêncio

terça-feira, 1 de outubro de 2013

ressequido

esvaziámos nossas carícias
primeiro ocas, agora ressequidas
magoámo-nos na aspereza do toque
já não há corpo nem meio nem lugar
para as carícias

debandaram como corvos negros
gralharam horizonte fora
até ficarmos aliviados
agora magoamo-nos se nos tocamos

tempo de brincar

vi tantas histórias nos montes da areia da minha ampulheta;
cresciam em camadas, os montes e as histórias.
podiam ser doces, pareciam-me de açúcar
amontoado, destinado a um bolo guloso;
eram sagradas de sal imaculado
como o do batismo na minha igreja,
que só a santa mão do sacerdote tocava;
via-as areias de um deserto que alguém galgava
com ou sem amada, sempre uma aventura.
então o tempo parava e a hstória mudava,
o personagem renascia num outro episódio,
feito camada a camada,
que os meus olhitos de menino namoravam
e nelas se alimentavam brincando.
quando eu sabia brincar com o tempo.

a ampulheta

lembram-se da ampulheta?
instrumento maravilhoso
acumula o tempo
solta-o, devagarinho
caindo, em montinho
de cima para baixo
trabalho da gravidade
e o tempo lá dentro
não foge, caindo
se cima para baixo
depois tudo pára
também há a pausa
conhecem? a pausa?
ampulheta tem sempre pausa