terça-feira, 31 de dezembro de 2013

a voz do túnel de gente

o som era de violino
encorpado em gente pobre
pelo abandono

as cordas vibravam, via-se
em garganta de anjo
ressoavam em peito de deus
e soavam pelos túneis
entranhando-se
naquele bocadinho de vida
dos transeuntes de olhos fixos
no nada ouviam
conforto de ser
daquele lugar de todas as horas

intemporais, passavam
dançados, confessados, apressados
deixando um nada de si
(a minúscula moeda)
suficiente para manter a voz
um violinista, ali, adrajo

a comunhão de almas que se tocam
a economia de arte
dá-se do fundo mais profundo
a troco de trocos

creio que o conforto de alma não tem preço
creio que ninguém pode pagar por ele
creio que todos os trocos são blasfémia

fantasiando

conheci-te
conheço-te, reconheço-te
decalcas movimentos
à contraluz conversas
que guardei minhas
revês, aqui e ali,
o modo de estar
nas memórias
nas recordações
engendradas pelo tempo
já não sei se vivo
se revivo,
se recordo ou se invoco

que seria do presente
sem as recordações passadas
sem as memórias futuras?

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

saudade

minha saudade
é de trepar aos mastros
não que a saudade tenha mastros
nem mar ela tem
tem recordações caravela de antigas
e nela se navega, fosse mar

pôr-de-sol

foi blasfémia
chamaram-te passageiro
quem não te vê todos os dias

não lêem no poema
a poesia além da rima
e no papel vazio
não encontram poesia

sábado, 21 de dezembro de 2013

oblíquo

oblíqua, a escrita
inclinado, o poema
erguido por um homem
perpendicular ao sol
que vive no meio (do) dia
e que se derrama
letra a letra
em vaga inclinação
a obliquidade

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

centro comercial em 10 itens

  1. um centro comercial é uma catedral de compras, há sempre um altar onde comprar;
  2. um centro comercial é um sítio onde se passeia, divaga e vagueia, se convive e namora, onde se compra e onde se transeundam os amigos do consumo;
  3. um centro comercial é um microclima onde as estações do ano chegam e partem mais cedo;
  4. um centro comercial é um culto caro feito de pechinchas;
  5. um centro comercial é um lá fora insípido e acético, sem chuva, sem sol, sem vento, sem frio e sem calor;
  6. um centro comercial é um lá fora com um estacionamento dentro de portas e wc limpos;
  7. num centro comercial o esforço de subir é igual ao de descer pela boleia da passadeira rolante;
  8. no centro comercial há 2 prateleiras, desajeitadas e reduzidas, dedicadas à poesia;
  9. num centro comercial rareia a poesia; usam-na para decorar clichés; 
  10. um centro comercial é a caverna onde se revela a alegoria.

por vezes, preciso retorcer-me para ver o dia.
outras, é o dia que se contorce para que eu o veja.

ao cantar do galo

o peito…
o meu caiu algures ao acordar
entre o céu e o mar
numa terra d'além
onde o vento marulha
e inquieta é a dor

minh'alma...
desalmou com o peito
inquieta
pecadora
baloiçando
sob um raio de sol

meu olhar...
persegue-os
cantadeiro
da dor
(sem sentido)
ao calor soalheiro

meu sonho

uma dia
escolherei uma mão
talvez a direita
com que agarrarei o coração
com ele escreverei
um poema
de passagem
sem início
sem fim

supresa

um dia a vida assoma-nos farta
prazerosa
linda, de despontar
bela, de frescura e outros aromas
gostosa de viver
e dizemo-nos a sonhar
(pois)
acordemos, que os sonhos
só duram se forem vividos

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

perspicuidade

quando meus olhos perderam as lágrimas
percebi que nunca as tiveram
eram ondas das marés
notava-se pelo movimento
de mar
e o horizonte ondeava
uma linha indefinida

bom dia

que te sorria, o dia
cheio
como o peito
escapando pelo olhar
de tão cheio

ateado em poesia
bom dia

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

desencontro

sem palavras
seco
sem o cristalino
sabor da chuva
em gotas
sem pingo luz
seco
sem corrente
de letras, nem escorrentes
mirrado d'alma
sem poema
desencontrado da poesia

domingo, 15 de dezembro de 2013

degraus

há os subidos
os descidos
ainda os tropeçados
e os escorregados
também os outros
onde passamos sentados

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

história suspensa

viviam uma história de campanário
um badalava as horas
a que outro respondia, contando cada batida

intercalados na vida
o que um fazia dia sim, dia não
o outro repetia dia não, dia sim
conversavam e ainda convivem
certos no tempo, que é o deles

uma história suspensa
sem curso e sem fim

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

morrer de amor

morrerei quando quiseres
não precisas pedir
nem dizer
é só quereres
fecharei meus olhos
guardarei teu rosto
suspirarei fundo
e morrerei por ti
como sempre morri
de amores

clausura

se acreditas que o teu fogo
se gasta acendendo o cigarro
então é verdade

se acreditas que o frio
é o que sentes em janeiro
então é verdade

tão pouco que sabes de ti
tão pouco te deste a saber
e nunca morreste.
como poderias sentir o fogo do renascer
se desconheces o gelo do transe?

deve ser verdade

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

desassossego

tu olhas-me
eu perco-me
beijo-te íntimo
o mais que posso
toco-te porque me controlo
meu desejo é apalpar-te
agarrar-te fundo
como te sinto
minha

saudade

em mim
banco de jardim, desbotado
enrolado leve do vento
repousa a folhagem
partirá depois das pétalas
que eram delicadamente brancas
e murcharam
(e)
dissipam-se as formas do tempo
nas pregas deste entendimento
tão garatujo de ser

nostálgico

lembro-me do tempo de inverno
as poças d'água gelavam
partíamos o gelo
e gostávamos, lembro-me

lembro-me que os dias nasciam
com o sol nascente
a terminavam num aconchego na cama
lembro-me

lembro-me do pôr-do-sol
ser um momento mágico do dia
aguardava-o, via-o sempre
tão longínquo, lembro-me

lembro-me da minha avó
e dos doces olhos, quase cegos
mimava-me de longe
receava que eu não gostasse, lembro-me...

lembro-me dos meus amigos miúdos
amizades grandes, mais que irmandades
lembro-me

lembro-me que ontem detestei meu dia
que o senti perdido de tempo
como desejei esquecer-me, lembro-me

lembro-me do peso da nostalgia
e do cheiro que tem, sinto-o

domingo, 8 de dezembro de 2013

aplauso

quando voam,
os pássaros aplaudem os poetas
os mortais pensam que é pelo bater das asas
os pássaros sabem que é pelo voo

voos

já vi voos diretos à utopia
onduleiam
incertos
borboleteiam
belos de se verem

sábado, 7 de dezembro de 2013

luto

a cobardia
é um bicho medonho
primeiro alimenta-se dos medos
depois dos homens
das multidões
e quando chega aos povos
morrem os ideais
padecem os países

no meu país
mandam ignorantes medrosos
semeiam fantasmas no povo
germinam cobardias
matam os ideais
que nos fizeram país
são medonhos
antes fossem bichos

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

neste jardim

neste jardim
as velas se enfunam
só para acompanharem os pássaros
que voam pelo destino
que um dia escolheram
ainda habitavam o pequeno ovo
e já sonhavam, no calor do choco
com jardim do ninho
e o dia em que estenderiam asas
tremendo de coragem
saltariam. e vogando
seriam nau e descobrimento
deste jardim

aconteceu

tropou à porta de mim
que nem era minha
era de uma certa consciência
que eu nunca vira
que mal conhecera.
ela, que propalava ser minha
ignorou o tropar
ainda que este voltasse
mais e mais, sem sossego.
ora sucedeu
que o tropar emudeceu
e a consciência adormeceu

beata

teu colo é de um rosário
que acaricias nas mãos
conta a conta
onde intercalas ladainhas
suspiros e desejos
de tudo e do céu
carinhoso rumorejo
meiguice ao alto no olhar
cruzas teu peito
de um bailado de mãos
coroado dum ósculo
te consagras e proferes
"uma boa horinha"

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

loucura

a loucura tem um dia
como a morte
enlouca-se, morre-se
e nada se mantém
ou de nada valeu
enlouquecer eu morrer

no dia da minha loucura
enlouquece-me
como se tivesse frio
muito frio
e precisasse do teu corpo
para me enlouquecer

no dia da minha loucura
discorda de mim
concorda comigo
mas não me fites indiferente
nem me cites pelo que lês

no dia da minha loucura
sopra-me um beijo
se puderes
toca-me por um beijo
que a minha loucura
se fará pura
como qualquer forma de vida

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

beijos teus

teu beijos, acatei-os
uma a um
confissões de sentidos
onde as palavras mordiscam os sentimentos
onde a emoção consome a voz
eram húmidos
colavam-se na pele
onde fitavas o olhar
revelaram-se
e desvendaram-te

mar prateado

deste mar tirei um lago
longo, escuro, largo
nele cresci uma ilha
que não plantei
de tão sombria
o sol nem tinha luz
que a alumiasse

estive
até o sorriso me nascer
como sol da manhã
das memórias
que um dia guardei de ti

o mar
sempre navegante
evaporou o lago
onde a ilha já se havia afundado
e escolheu-se prata
para oferecer o brilho matinal