terça-feira, 30 de dezembro de 2014

abandonada

o silvo ergueu-se da noite
escuro solidão
trespassou o silêncio
e doeu o nada dorido da ausência.

o berro, morto, ganiu um gemido.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

pato bravo, p.e.

demonstram-me os factos
que a incompetência é uma ciência
muito estudada e evoluída,
praticada entre a patetice e a injúria:
a mentira é o método e o instrumento de eleição.

demonstram-me os factos
que nesta ciência, a ignorância
é diretamente proporcional à arrogância,
e, se estivéssemos em  poesia, diríamos que rimavam
e mais não digo para odeio rimar mal.

demonstram-me os factos
que a pior incompetência é fazer mal com propósito,
ainda que os procedimentos exijam elevado nível de capacidade,
há a incompetência para ver, olhar e sentir os outros
fora do centrípeto movimento do umbigo incompetente,

como um buraco negro,
o que é a maior das incompetências.
demonstram-me os factos.
não sei qual o grau de parentesco com a preguiça
que é suposto ser a mãe de tudo o que mexe em prejuízo de outrem.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

sim!
chega-te à maçaneta da porta
roda-a! e entra na vida
entranha-te até a desconheceres
continua até te desconheceres
então volta se muito o quiseres
escolhe um percurso diferente
se te perderes segue em frente
todos os desertos terminam
a caminho de um porto de mar
lá terra e água se tocam
como a chegada e a partida
a vida se engrandece
se atreve ao movimento

apaixono-me todos os dias
discretamente
por todos os olhos que tocam nos meus
se são felizes rejubilo
dilacero-me, se são tristes
tudo momentos
depois largo-os, deixo-os livres
vão como aves que migram

sobre o momento escrever

sobre o momento escrever
sei-lhe a luz
clara, ao fundo, incandescente
por vezes fria.
há um movimento de quem debulha
estende, amontoa e volta à eira
que o sol – o tempo – curará.
o traço é de esquisso naturalmente inacabado
algo em esboço que não sendo de facto
se lê de dentro para fora.
um trajeto enleado no tempo – construção
íntima – o momento.
leitor e escritor tocam-se
o par bailando na melodia do texto.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

história de uma história

a história era fraca
acho que ninguém a entendia como tal

esgueirou-se, a história, para outros lugares
e foi-se encorpando. aos poucos
começaram a adivinhar-se-lhe os contornos
ela própria se desenvolveu em envoltura
em meneio. agora,
passava e movimentava atenções para si
enchia peitos
regressava convicta da sua importância

abrilhantou o jantar
20 pessoas glosaram em torno de si
aplaudiram-na e entrosaram-se nela
era agora uma história interessante
em vias de se tornar forte
quem a escreveu queria uma história
e ela que só queria ser história, conseguira-o.

domingo, 14 de dezembro de 2014

nevoeiro

entendo agora o nevoeiro
nascido nos montes
esse cinzento húmido frio de fraga
nasce da terra em penedos
bolas de fumaça feitas
para se entranharem nos corpos
até aos ossos
como antes se entranharam na terra

as gentes dessas paragens
lêem o tempo pelo vento e pelo sol
contam-no pela lua
sabem tudo dos nevoeiros
as palavras, semeiam-nas esparsas
como as fragas
e no frio do corpo albergam o coração
são como o sorriso, justo e duro
como o olhar endurecido ao tempo

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

estado de desempregado

se tivesse um pouco menos de aperto nas vísceras,
do fundo até ao estômago,
e de frio suado, de dentro do corpo até às mãos.

se ao menos o vómito fosse possível
e saísse do limbo da vergonha de quem se esconde.

seria mais fácil tudo, o momento
e o emprego talvez não me fosse negado

o que eu daria por um pedaço de trabalho digno
e me sentir competente, novamente...

do fundo

do peito fundo
fundo de mar
ao fundo do leito, flui
o que é rio
o olhar
profundo, o sentir
profundo
do sono profundo
ao profundo acordar

procuro
no desassossego
o encoberto dizer
sem repouso
na orla da página
desfolha-se a inquietude
aos olhos debulha-se o trecho
na página, a história
se urde da metáfora

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

amanhecer
aquela gota cristalina
escorrente da noite
ilumina-se
os cintilos são de estrelas
o sol é a metáfora

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

perpetuamento

sentia-se primavera
soalheira
tarde ainda na primeira metade
dia normalmente bom
luziam teus olhos em todos os cantos
pronunciámos "envelhecer juntos"
com a convicção de quem ama
em estado de paixão

o banco plantado no jardim
permanece
a palavra aberta de sonância
incessante

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

acontecia ser
dia do poeta que
nascera um dia
e agora que 
poeta nascia
ninguém soubera
ninguém sabia

insana

deste lugar onde escrevo
a paisagem soa a tiros
estronda e... rebenta
alguém morre
há sempre alguém que morre

neste horizonte conheci a morte
estampava uns olhos
deixou os dedos cravados
em meu braço agarrou-se
e a morte, senhora daquele olhar
chegou e levou-o
conheci a morte

neste cenário morri algo
resta-me o medo da morte
que me alimenta
por ele fujo
sou corajoso e mato

ânsia

sou
dum poema, o verso
impossível

sou
a palavra mal dita
improferível

sou
o apuro na metáfora
indescritível

sou
o devir ainda
infactível

sou
o desejo em ser
inexequível

sou
a ânsia em suspiro
o tracejo em esboço
acontecente inacabado
permanente

sou
o desejo em ser
que nunca será

do céu

no céu
entra-se
penetra-se
sem tocar
entranha-se
e o céu
que é céu
continua
como sempre
mais acima

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

o céu era abóbada
o voo improvável
o horizonte projetava-se
a linha desenhava
o alicerce
o limite se define e encerra o templo

a nascente
a água brota pura
jorra sem destino
além
o voo é presumível
o altar celebra-se sem cúpula

o poema
se inventa além da utopia

horas rodopiam
bailados

minutos correm
dispersos

o tempo decifra
o poema emergente

manhã
o gesto é luz
o verbo é metáfora

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

também aí estronda
de dentro
do peito aos olhos
a tempestade arfa
esgotada
então o mar acalma

luar

a lua estava

repousava
à tona do charco

iluminava
o fundo do poço

atulhava
de prateado o lago

ondeava
a crista do mar
do melhor reflexo lunar

envolvia-a
um véu tingido de estrelas
encheu-se o céu

a lua sempre
distante e presente
cuidando
fiando
o luar

função plástica da masturbação

o movimento
entre o corpo e a mão
o sexo
a ideia
a fantasia
em tesão
arrepia
retesa o corpo
sublime
suspensa a respiração
o momento
o plástico do movimento
entre o corpo e a mão

solilóquio

de mim de mar
escrevo
o que nunca soube

caminho...

conta-me porque
me banhas os pés areados

engenho meu
poesia
teço ondas 
enrolos de mar

como concha de chão
que vais apanhar
para a deixares cair

satisfaz-te
a brevidade
simples
de a tocar 

finjo-me gaivota...

noto-to no olhar
atira-lo alto 
solitário 
distante

soltas na areia
teus passos rasantes
de voo inacabado

há uma certa solidão no voo...

no voo há paisagem
destino em pouso
aventura
frescura e leveza
prazer em viagem...

a solidão sempre
morou em peitos 
incapazes de voar

de onde és
nem te fazes ao voo

eu...
estrondo-me em ondas
rebento-me na escarpa
salpico-me em gotas
refaço-me em espuma
solto-me no ar
e parto no vento
vou aonde me levar...

agora marulho contigo
é-me outra forma
de sair de mim
de voar

terça-feira, 18 de novembro de 2014

borboleta

borboleteia
ao sol se aqueceu
se estendeu
até se espreguiçou
saiu voando
bailou
o sol em seu voo rodou
até ao final do dia
regressará de manhã
o dia nascerá
por cá por ti
borboleta
o sol bailará

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

faltam-me as inutilidades
sei que falta é uma inutilidade
o que sei também

imortalizo os ontem que encontro

amanhã traz um ontem no bolso
ontem ostenta um amanhã na lapela
e fica-lhe bem

o retorno cego é uma história perdida

dos rios

os rios caem do céu
estrelas repuxam a terra
alongam-se as montanhas até ao firmamento
estrelas esvaem-se em reflexos prateados
em leitos
geram-se os rios

abalam sozinhos
enrolam-se nas curvas do terreno
cursam buscando casas que passem perto
chamam os peixes e os pássaros
querem-se vida e penetram a cidade
à noite fazem-se em reflexos

os rios sobem às árvores
entranham-se pelas raízes, as árvores
os absorvem, incham alongam-se
crescem carregando os rios na seiva bem alto
à folha cimeira do ramo do cume donde apreciam
das gentes os reflexos que espelham do leito

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

do beijo

o sabor
orvalhada
cintilo
sal de corpo
que o mar deixou

o aroma
doce
condimento
incitante de pele
que em pele roçou

sempre que reuniões sucedem
semeia-se a ausência de silêncios
que nem entre as palavras acontecem

a mosca pousava em meu lápis

um beija-flor alando
o canário papagueava
bulia o silêncio do voo

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

caminho pelo lado mudo da vida
a palavra nasce do silêncio
é gesto
tem lábios, mãos e corpo
e voz que é muda
é poema
lê-se em pensamento
saboreia-se
mudamente, em silêncio

de abril

lembro-me
ainda era 25 de abril inacabado
e havia quem queria o 24

lembro-me
que o 25 de abril foi dia grande
e houve quem nunca saiu dele

lembro-me
que o 25 de abril teve um cravo
era um gesto de paz, encarnado

lembro-me
do 25 de abril esquecido
e havia um cravo apagado

lembro-me
que houve mais dias de abril
e de outros meses e anos

lembro-me
do desânimo do 24 de abril
fatalmente igual ao de hoje

lembro-me
em abril nasceu o gesto que nos uniu
poema, pelo cravo se fez da arma o vaso

recordarei
o intriguista bafiento, o que assanha
povo contra povo e assim governa

sinto desprezo
tenho pena, muita pena

a mário viegas

ao homem da poesia
límpida da voz rouca
recalcitrante de clareza

domingo, 2 de novembro de 2014

gotejos do dia

o sol entre a chuva
e o vento

das árvores as folhas
soltas
pingam pelo chão

os pássaros
gotas de voos
salpicam o céu

as nuvens
obreiras dos céus
mães de todas as gotas

destino

de rio em rio
corremos
desaguámos
fluentes
de rio em rio
arremessámo-nos
abandonámo-nos
silentes
de rio em rio
desejámos
a água fosse o querer
espraiámo-nos
de rio em rio
tomámo-nos
inteiros
gotejámos
chuva
aguaceiro
absoluto
de rios
navegámos
sem velas
sem remos
rio após rio
nos quisemos
de mar
nos fizemos
de ondas
galgámos
bradámos
marulhamos
ainda
que dos rios
fluímos

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

a palavra

adeus
era a palavra
que usei
por não saber mais
nenhuma

adeus
foi a palavra
que tinha
quando nada era
ainda

adeus
sempre a palavra
que pulsava
e nada mais havia

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

a rua

quem quer mesmo perder o jeito
perder mesmo, seja qual for
saia de si
mostre-se à porta
ouse entrar na rua
rua mesmo
onde o mundo de expõe
passando
onde se entra nele
e passamos com ele sem entrar em casa
depois faça-se a viagem em sentido inverso
se se quiser
se houver audácia
e se retornarmos a casa, por termos cruzado com ela
descanse-se
casa é o melhor sítio para descansar
e a rua o melhor sítio para perder
onde tudo se encontra
que a rua acontece

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

quis chamar-me pelo nome
que seria meu e desconhecia-o

sabia o que me fora dado
ignorava se me pertencia

dos indicadores

a melhor maneira de desumanizar uma sociedade
é descrevê-la por indicadores
numéricos, assépticos, inodoros;
permitem escalpelizar a realidade
numérica, neste caso.

já agora, qual é o indicador de dignidade?
e o de responsabilidade?
e o de racionalidade(?)
no qual assenta toada esta visão "indicadora" das pessoas
no mundo?

quando os números se tornam mais importantes que as palavras
e estas mais importantes que os olhares
a humanidade mortifica-se
pela perda de humanismo.
desconheço a fórmula matemática da dor
da vergonha ou da indiferença
mas sinto-as nas faces,
mais profundamente nos olhos,
nos gestos, grandes e pequenos,
e sei-a sem indicadores
e sei-lhe a grandeza
e sei, ainda, da grandeza de quem sente.

depois há o uso que se faz do indicador
serve para perceber o que falta
e para ir mais além em humanismo (?)
ou serve para justificar a opção pela desumanização
pelo desacato entre grupos
pelo desvio à responsabilidade individual pelo coletivo,
à solidariedade
ou, ainda, para exacerbar uma visão racional
asséptica, inodora. insensível
em análises numéricas, indagando-se
e descobrindo-se sempre - sempre mesmo - alguém
nalgum lugar do mundo
que fez algo, ainda que momentaneamente,
que nos confirma a veracidade
a fundamental
realidade aqueles dígitos
seguidos de uma percentagem
e uma legenda: o indicador
será perfeito se tiver um sinal de moeda
será sublime, se de um magnânime mercado
essa abstração em forma de deus.

trouxeram-nos um bezerro de ouro
fizeram-se sumo-sacerdotes e entoam rituais de sacrifício
propõem-se oferendas; alguns de entre nós, os estropiados.
nos altares erguem-se bem alto dizeres de merecimento do castigo
sacrificam-se alguns para que outros sobrevivam
o que só acontecerá - sobreviver-se - pela benevolência
de um ídolo ourado que precisa de povo para o adorar
e esperam que o povo aclame, em uníssono.

o bezerro é o mesmo de todos os tempos
e os sumo-sacerdotes também
o povo já não aprova e não é unissonante
esse é o sinal do crescimento civilizacional
e esta civilização já deixou o ritual ir longe demais
ainda que todos os indicadores - escolhidos - apontem o contrário.

domingo, 19 de outubro de 2014

das mulheres

das mulheres há o encanto
como nomeiam as estações
e como alimentam pelos olhos
o asseio colorido da primavera
o calor tórrido que os verões têm
ou a doçura em morno aroma do outono
ou, ainda, a pureza branca do frio inverno

talhei-me de encantos
ainda nos tempos da minha avó
nos olhos seus, baços de quase cegos,
giravam, cristalinas, todas as estações dos anos
e se desprendiam matizes várias
aromas, cores, sabores e temperaturas

as mulheres nunca envelhecem
acarinham o tempo nas histórias suas
encantos que afagam como bonecas
e, por magia, a vida se adentra

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

a palavra em estado puro soa com simplicidade
tem rasto de criança e ilumina como a luz
e transporta a sabedoria dos renasceres

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

diálogo de um amor normal

ainda não sei
porque não sei dizer-te
o que sei.
não será bem o que sei
é mais o que sinto
e que não sei dizer.
em mim coração e pensamento
andam embrulhados desde sempre
soam a amantes apaixonados
de contornos indistintos
creio, não se importarem com isso
nem com as palavras das descrições.
uma vez apanhei-os a confidenciar
"que importam as palavras e o descrever?"
ao que o outro emendou
"será deslumbrante, caso não se perca o momento
a magia o sentir e o sentimento"
eu concordei e confirmei.
o que dizer agora
que me afoga a felicidade
algo teu cruzou comigo
calo-me sorrio silencio-me
sossego
nunca sei o que digo

terça-feira, 14 de outubro de 2014

volátil

a palavra
infinita inacabada e perfeita

o poema
drapeio parábola do vento
provém e eleva
nas dobras guarda o sentido

presciência

havia, de onde tu vinhas
um sorriso ainda vivo em teu rosto
– de onde chegas? quis eu saber
– de onde me beijarás
eu sonhava fazer-te feliz
tu já tinhas sonhado este agora

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

da chuva

da chuva, eu desconhecia
que ela mesma fazia
muita água correr

também encontrei água sentida
por ter sido impedida
de, à chuva, passear

contou-me que se empoçou
queria sentir o céu
e o toque do seu pingar

terça-feira, 7 de outubro de 2014

filho

a tua presença transfigura-me
homem, vejo-me pai

o centro do teu olhar tocou-me
rebentou-se o orgulho em mim

já dizes "não" com sabedoria
e o teu "sim" é concordância e consentimento

já não tenho chocolates no bolso
ofereço-te a discreta admiração num sorriso leve
cuido o teu lugar em meu colo

meu filho

maravilhei-o com os olhos antes de pegar-lhe
queria dar-lhe o colo perfeito e não fiz planos de futuro
acho que temi errar na fantasia
gostei da ideia de sermos felizes ao sabermos um do outro
já no colo, estranhei que tanto amor pesasse tão pouco
aconcheguei-o o mais que pude e meu corpo fez-se ninho
procurei os olhos da mãe, tinha que dar-lhe daquela felicidade
saiu-me:  "tão lindo, ...tem os olhos como os teus..."
esta 1.ª vez aconteceu-me 2 vezes

minha mãe entrou no céu de menino ao colo
no colo de mãe os corpos moldam-se pelo exterior
o molde é a ideia bem de dentro
lembro-me de tudo do colo da minha mãe
do calor, do cheiro e do carinho
do toque que a mão dela soltava ao segurar-me
esta ideia de colo é-me um tesouro
minha mãe disse-me com tudo que estávamos no céu
depois chamou-me "meu anjo" dentro dum sorriso
eu ainda não falava e não disse nada
ela percebeu tudo

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

poesia, o meu fazer mais belo...

voz do poema

fosse eu cantor
e entoaria os poemas 
com a toada que os sonho

soaria a forma
o voltar da folha
o rasgar do papel
o sussurro da caneta
o toque do caderno
entre o abrir e o encerrar
até ao bolso

corro! corro! corro!
atrás do pensamento
de mim foge, assim parece

corre corre corre
vai agita e faz o vento
e a tempestade em mim se dá

a pétala caída e a folha já pousada
são o princípio do verso

a liberdade é tecida das bondades individuais, que são os fios...

...
ouvi chamarem-me poeta
acho que andava em poesia
...
sou um caminhante
vivo nos trajetos
os que a poesia me sugere
...
"o perpétuo movimento"
...

terça-feira, 30 de setembro de 2014

perfeito

da minha janela
há um campanário que me habituou às horas
todos os quartos
chega e solta as badaladas
todas perfeitamente iguais
perfeito, dir-se-ia

em cada face da torre
há um relógio
4 ao todo envergando as horas
também iguais
perfeitamente

da minha janela
há 2 faces do campanário
e mais 2 que adivinho
todos os lados são iguais
perfeitamente iguais

por cima do campanário
há uma cruz
também ela perfeitamente igual
a todas as outras
e as pessoas que entram na igreja
na base do campanário
são muitas e iguais
perfeitamente iguais
e quando oram
são perfeitas e iguais
as orações e as pessoas

e o campanário
que é único na minha janela
é perfeitamente igual a todos os outros
também perfeitos na sua existência

finalmente a minha janela
que me é exclusiva
é perfeitamente igual a todas as janelas
erigidas nesta cidade
mas tem uma vista única
perfeitamente

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

a morte é uma entranha em crescimento
entranha-se pela alma e vence no corpo...
a memória (coletiva) é um artifício antigo para vencer a morte

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

caos

algures
no indefinido
- ponto do inexplicável -
suspira em mim
um desejo quase neurótico
pela palavra bailarina. sufoca-me
a ideia que se abotoa desaparelhada
a forma que não serve
o quente da fricção
o ritmo sem melodia
a mensagem que não derrama
a criação que não se abeira
...
e tanto que tenho para dizer
sem que saiba, ainda, o quê...

envoltura

de amor
enchemos as mãos
de corpo
que derramava
ou se derramava
caía solto
ao encontro das mãos

fragmentos

i
da minha janela
o que vejo sei que existe
ainda que em mim, só, da forma como vejo
desconheço o olhar de outrem
ignoro-o pela condição de não o sentir
tão somente o adivinhar
ou ver como, que é outra forma de adivinhação.
...
em frente percorrem, as pessoas: é uma avenida
ao lado desenvolve-se um prédio: uma gaiola
por detrás o azul celeste do mar.

a minha tendência pelo mar
os meus caminhos desaguam nele
um dia começaram lá, era eu criança
e meus ouvidos alcançaram ser búzios
fiz dele gente e ele gente me fez
o desapego sempre meu
a paixão sempre minha
o acolhimento sempre dele
2 entidades
2 acontecimentos
2 pessoas
eu e ele
2 pronomes pessoais
no meio o tu
pronome que usamos entre nós
...
as nossas palavras não se proferem
surgem
expandem-se
espraiam-se
estrondam-se
brisam-se
como tudo entre as pessoas...


ii
as bordas da minha secretária
depois o abismo que me afasta da floresta em frente
como invejo os pássaros
como gostaria de deslocar-me em voo
como gostaria de não andar de não me mover a passo
como gostaria de pular quando não voasse
como gostaria que meu corpo se deslocasse
na mesma forma que meu espírito...


iii
na avenida
as pessoas caminham - palmilham - por obrigação
na cidade tudo acontece por obrigação.
há uma ordem que obriga
até os actos mais voluntários
como o sentar num banco de jardim
só para ver passar o que passa.
a obrigação é a ordem da cidade
por isso se arrastam as pessoas
de rojo atrás de cada passo
o corpo não se impulsiona
o pássaro da gaiola não sabe voar
a galinha - sendo pássaro -  não ousa voar...

iv
na minha janela
há um casulo pendurado
bomboleia ao vento
invade-o um ronco de autocarro
que nele ecoa e se amplia
estremece-o
embrião de vida
selado
esforço último de lagarta
a existência dedicada à metamorfose
...
ao homem nunca o entendi
como ser de metamorfoses
muda-se, certo!
transforma-se, concordo!
porque renasce após morrer
de cada vez muda de religião
refaz seu deus e as tréguas consigo mesmo
é um litígio doloroso de mudança
sem calendário nem genética
e nada sei de casulos

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

sábado, 20 de setembro de 2014

encontrara a paz 
surpreendeu-o a ausência de tom no branco
compreendeu porque a rendição e a paz têm a mesma cor

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

quando o poema não é mais
que a sombra das palavras
apanhadas ao dizer
o flamejo que em teus olhos brinca

leio o branco
entre as linhas ponho a cor
onde as meninas crescem radiosas
e se franzem as pálpebras em sorriso

há felicidades que só os olhos pequeninos descrevem bem

terça-feira, 16 de setembro de 2014

ditador

as linhas do rosto inoxidáveis
cinzas frias e duras de aço 
o gume no olhar
fatiava tudo em volta
com a mesma frieza de que se fizera 
têmpera trabalhada dia a dia
todos os olhos se desviavam à sua passagem
chegavam-lhe ares de poder
que não o era
que o poder não existe no estado isolado

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

da vela

sei o equilíbrio frágil de chama
e embebo-me na auréola da cera iluminada

indago o fervor escorrente em inverso da ruga
e passeio na curvatura da luz e sigo
o bulício do reflexo da parede ao tecto

colho o cintilo espelhado pela íris

sou rasto de corpo tingindo de sombra a mesa
desejo desconter-me
e espraiar-me em corpo derramado

colorido

o azul é branco ou sem cor

o sopro perfeito abarca
o toque que faz a pétala

o corpo rumoreja
o idioma que a ave voa
a asa que baila e acolhe

a palavra é silêncio cúmplice
o aroma tem cio em tom de olhar

a cor sem nome é quente e será berrante

terça-feira, 9 de setembro de 2014

os olhos da velhice são turvos
de coisas vagas, escondem-se
não se lhes veja o embaraço
acontece despontarem
encantadores, límpidos
ao toque em sopro dum olhar

da cor

onde o oceano dorme
desperta o seio
em ti, aguardando
da borboleta colorida o pólen

que a essência embeba
na borboleta a cor
no seio o ser
a vida no ato

o sono do mar marulha bonito
lá escolhi pintar esta ideia

domingo, 7 de setembro de 2014

o curioso da amizade é ser um processo
iniciado algures, porém, inacabado
pelo qual nos revelamos reconhecidos
por termos sido os escolhidos

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

rancor

do teu peito já abalaram os pardais
também os chilreios e os pulos da passarada.

nele pairam outras aves
o negrume grasnante  dos corvos
e o mergulho do falcão para a bicada fatal.

do peito

peitos fazem-se de pulos de ave 
de sopros meninos em bolas de sabão 
de voos de borboletas
e a cor é a das flores

o sol é aquela luz emanante do peito

desesperança

a manhã não brota
não aparece
não se ilumina
será tarde e nem o relógio a ousa anunciar 
será um dia que só tem noite e depois a cinza do nevoeiro
será um dia em que meus olhos se embaciam e descaem até ao chão 
gostaria que quisessem rebolar-se na terra por um prazer menino de se sujarem 
antes, procuram as pedras para se abrigarem do desconhecido que tanto temem
do sol já nem se lembram do nome
e quando o ouvem a palavra é o vazio 
... e as manhãs não vêm

gosto quando soltas os lábios no beijo
e da forma como se engalfinham nos meus
então somos o que sempre fomos
essência

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

De manhã

Eis que sopra a manhã
Sem vento ainda 
Arrivam as memórias 
Uma a uma ou em bando 
Pousam como pássaros na linha
Que o horizonte ondula
As nuvens brincam nela às escondidas
O sol espevita-as de fora
Elas resplandecem de dentro como os pensamentos
Tem sabor a recreio o rumor da manhã

Onde me aguardas de olhos fitos
Sei-o e trago um sorriso para ti
Que embrulhei num toque
Com ternura

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

depois

abraço longo,
até ao esquecimento
um corpo repousa nas curvas sem fim
que o outro oferece — o corpo — linhas
de regaço, de colo em anca e seio e ventre
de carícia, mãos leves de dedos e pés
em pernas enlaçadas,
curso do olhar fixo e calmo
até ao acalento

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

de manhã

a manhã
o despertar foi o beijo que o coroou
os olhos que foram buscar-te ao adormecer,
ainda antes de se abrirem,
retornaram e tu estavas onde sempre estiveste
aguardando o sorriso que me levarias.
- que o mar precisa de peixes
que os jardins têm flores
que meus dias querem sorrisos, beijaste.

sábado, 23 de agosto de 2014

minha imagem é de um vulto numa ilha
meu amigo, o vento
dá-me colo ao pensamento
enriquece-o de mimos e folias
no regresso traz histórias, novas
de lá, onde a esperança é um reino
eu, que temo o delírio, abro os olhos
e toco o meu dia
e descortino-me, ao longe
um vulto numa ilha

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

puro movimento

onde as folhas rodopiam
há leveza, dança
pureza do movimento
passar de nuvem
vogar em barco
voo em ave
um sorriso
um pensamento
ritmo de poema
métrica do momento

dos jardins, a perenidade

o jardim a que chamo meu, porque o sinto, sei que é de quem o cuidar, ainda que sem trabalho laborioso; basta um simples olhar de entrega ao momento, e guarda-se em nós um pouco daquele jardim e será nosso, e nós dele, para sempre, que amar um jardim é assim...

e o jardim a que chamo meu é-o de cumplicidades, que não encerra, que não brota, que não expande: estão lá, como as flores, as árvores e as pedras que são visitadas pelos pássaros, pelas abelhas, pelas borboletas e pelos ventos, chegam e logo partem: poisam rodopiam e vão, chegam rodopiam e partem, dão movimento — cumplicidade — e tornam-se cúmplices deste acontecimento denominado jardim.

hoje os pássaros chegaram mais: mais próximos, mais pássaros, mais belos, mais lindos e, como ao jardim, senti-os mais meus. e eram-no, ignorando (ou talvez não). acontece sermos de alguém sem o sabermos, pelo incidente de ali passarmos, captarmos a atenção, um olhar e ficarmos alojados na memória — personagem de uma história de um momento —; é por esta necessidade de animação dos momentos que somos tão gregários, instintivamente(?) gregários, e nos pertencemos mutuamente sem que disso sejamos conscientes, sendo-o.

hoje, em meu jardim, meus pássaros chegaram mais belos, mais lindos e mais pássaros e mais meus, e pelos voos deles elevei meus olhos, primeiro mais alto, depois mais além e, finalmente, no horizonte, em linha. ao longe, uma casa, outra e outra, donde partiam os pássaros que chegavam, para onde iam os pássaros que abalavam. casas como a minha, talvez ajardinadas talvez sem jardim. os pássaros iam, pousavam, vinham, rodopiavam — no ar, no chão — como o vento, eram a cumplicidade entre jardins, que existem para aprendermos a estar com as flores, com os insectos, com os pássaros, com o sol e o vento e com todos aqueles cuidam e guardem um pouco do que chamamos nosso, ou de nós que somos gregários, por instinto.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

vocação de deus

ao escreverem-se, as ondas
ao correrem, as nuvens
descobrem-se, os sóis
de azuis que no céu e mar existem
celeste de prata marinho

rasteiam, as gaivotas
tecidas a branco e castanho
tracejando o céu entre a terra e o mar

sabem-no, as gaivotas, quanto as apreciamos
sentem-se deuses nessas alturas
e nem se importam com o facto

deuses são mesmo assim
ligam e harmonizam por vocação;
a mesma que os criou

domingo, 17 de agosto de 2014

descrevessem os nomes as existências
talvez eu viesse a entender-me um dia
antónio fazedor do ninho

e se tudo mais morrer
e se eu morrer
serei ninho

(versão 2)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

amor e amar

os pássaros, como os frutos, criam-se nas árvores — que sempre foram ninhos,
as árvores — e amadurecem.
ganham cor — os pássaros —, fazem-se coloridos e partem à descoberta.
do bico — dos pássaros — pende-lhes um simples ramo de árvore ou
um canto de ave ou,
ainda, a banalidade inteira de um roçar de bicos.
já os frutos, sem bicos nem asas, amadurecem belos e oferecem-se
aos pássaros, entregam-se às gentes e outros animais.
árvore é lar, cria e alimenta de si mesma quem quer que passe por ela.
como o amor — de mãe —, que tem árvore algures na sua complexão,

e que estas — as árvores — entendem tão bem...
expõem seus troncos à paixão dos jovens amantes que neles se declaram;
a forma é de um coração desenhado a gume de canivete.
elas — as árvores — sabem que é um ímpeto de pássaro apaixonado
e correspondem com um gesto de amor — de árvore —,
pulsando um coração que sendo o seu, nele se grava o nome dos enamorados
inconscientemente unidos por um mui discreto ato de amor,
que apesar de  visível, para o ver é preciso procurar.
eis porque árvores, frutos, pássaros e pessoas são preciosos
para que se entenda a complexidade do amor e de amar.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

o horizonte é uma construção que se vê.
por ele impomos limites a nós mesmos, pelos olhos.
é fronteira, o além que precisamos tangível.
ainda que só os olhos ou os olhares lhe toquem.
que se saiba não há registo de alguém que tenha tocado o seu horizonte.
só os loucos vêem além daquela linha e fantasiam.
só os loucos se preocupam em ver dentro deles mesmos.
eis o universo ideal, limitado pelo olhar e oco.
recusamos ver dentro de nós algo que não seja mágoa.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

um certo pássaro grasnava em mim
levou-me ao carvalho que suportava minha casa
o que o fazia a minha árvore
eu era dali onde meu ninho se dera
que os homens, como os pássaros,
são dos ninhos
onde aprendem as emoções e descobrem os sentimentos
de onde saltam em voo livre e retornam
pelo desejo de chegar; chamam-lhes lar.
pintei o que não pude escrever
nem sei se meus olhos viram
meu carvalho tomando minha casa nos ramos
que brilham. que a natureza também ama

a luz de um sopro
na voz de canavial
onde caminham meus olhos
bamboleando 
ou uma viagem de corpo 
que a cadeira ensina
balouçando 

domingo, 10 de agosto de 2014

descrevessem os nomes as existências
talvez eu viesse a entender-me um dia
antónio fazedor do ninho

deitar-me-ei à beira-mar salgado; 
onde as ondas rebentam, 
a folia contida na viagem, 
e a espuma que rendilha as ondas é sal. 
limpará a alma do pecado original. 
o mais injusto dos pecados.

sítio

no sítio onde os pássaros voam
no sítio onde os pássaros pousam
no sítio onde os pássaros pulam
no sítio onde os pássaros gralham
no sítio onde os pássaros bicam
no sítio onde os pássaros andam
no sítio onde os pássaros vivem
também os cães latem em eco
e as abelhas zumbem
os chocalhos das cabras badalam
tal como o campanário nas horas
o vento restolha nas árvores 
o galo canta longínquo 
sem que se ouçam
sem que se vejam estão lá 
belos como sempre fazem o sítio onde tudo acontece
onde tudo chega 
onde a harmonia se respira e se bebe 
se olha e se entra
a liberdade que cada um tem para todos

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

caso os amigos fossem de ver, poderia, eu, vê-los passar, somente. 
porém, sinto-os antes de tudo
e por isso os poderia pintar de um só traço, fosse eu pintor, 
fotografar de um só clik, fosse eu fotógrafo, 
ou dedicar-lhes um poema, 
para que fique impresso no tempo a bondade do que sentimos: 
a que nos faz sorrir, gargalhar e trocar olhares,
e todas as demais melodias com forma de gente.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

nós

serei
sempre que me deixares
teu
sempre que me quiseres
ter-te-ei
sempre que me deixares
serás em mim
sempre que me quiseres
sei que há vontades
nossas
além de mim
além de ti

dos jardins

dizíamos que o jardim era nosso
partilhavamo-nos pela posse

na verdade, queríamos uma cumplicidade
algo que nos enleasse

que os jardins não têm dono
são, sem pertencerem, de quem os cuida

no jardim

há um olhar em cada flor...
- toques macios, afloraste
tu que encontras o toque
onde eu procuro olhares

das borboletas

da morte...
entendo-a, sei
que não é ruína
essa entra depois
se a deixarem

ao elevarmos os mortos
criamos a eternidade
o desejo de viver
pela morte se perpetua

já a ruína penetra
pelo latejo insano da imortalidade física
imutável crisálida

a vida é o gume
o resto será o que quisermos
eis o risco de vier

domingo, 3 de agosto de 2014

sobre homens

dos homens sabe-se pouco
o que falam de si é vago
o que dizem de outros é exagero
olham o mundo com desejo de posse e de mudança
encobrem-se nas palavras à medida que crescem
pelo silêncio desnudam-se, até ao estado de recém-nascido
sabe-se que geraram a humanidade e que por ela são paridos

diálogo interno

olho-te
folha branca
vazia.
vejo-te enrolar
dobrar em barco e peixe
depois em cisne e avião
e desenho de criança
que escrevi
não sei se é poema
mas era-me poesia

não se negue a ninguém o direito de cair:
sem ajuda, levantar-se-á mais próximo da vida;
apoiado em alguém, erguer-se-á íntimo de si mesmo.

a morte, talvez pelo seu género
tende a causar um certo fascínio
nos poetas, que são do outro género

o que tenho a dizer
não vai além de um poema
curto
acontece caber num verso
simples
às vezes é só uma palavra
outras, um silêncio

minha memória é fraca
velha e desatenta
e tem tudo para ser preguiçosa
que o é!
não guarda nada
do que leio ou escrevo
por isso escrevo.

acontece eu ler-me sem autor
acontece surpreender-me nessa escrita
agradeço à preguiça que a memória tem
quando me lembro...
tenho o hábito de agradecer a deus

terça-feira, 29 de julho de 2014

da palavra não dita

embargo de voz é uma forma de palavra encalhada;
a garganta dói dilacerante,
ferida de arestas da palavra que força a saída.

já o peito dói de esforço carregado profundo,
o peso de empurrar a palavra que não sai
e cai, retorno contundente, rebentando por dentro
o peito dorido.

um peito rebentado baterá sempre aberto e ferido;
ensurdecedor, o pulsar dum coração partido.

ser poeta é acreditar em banalidades como a utopia, a liberdade, a honra
o amor próprio, o amor aos outros...
e, se tal não bastasse, poeta escreve sobre essas banalidades invocando futilidades
como voos de pássaros e de borboletas, marulhos de mar e de rios
azuis que nasceram celestes, verdes sempre naturais
e a felicidade, que só os patetas conhecem,...
diz-se que os poetas também

mar

mar
é onde nos espraiamos
primeiro o olhar
depois o espírito
e então o corpo
- sem que saibamos como -
esculpimo-nos praia límpida de olhos e de água
cintilamos rocha banhada de sol e de ondilhas
o odor é de sal e de iodo
as algas sempre drapeiam embaladas na brisa
vestimos o corpo franzino de mar rendilhado
espuma
estremece a alma de tão marinha se vê
à transparência de um voo
que os voos transparecem os pensamentos das aves
por isso são coloridos
é inquieta a serenidade que nos fará voltar

da sonância

não sei quanto me pareço com o que escrevo
das ondas e dos voos
das cores e dos brilhos
do sossego de pairar e de mim

nem sei quanto me pareço com o rabisco
que desenha meu nome
e vem o retrato que olho e remiro
e não me reconheço

são as vozes - as sonâncias - que me encantam
não me nomeiem
musico-me nelas e nascem-me poemas
traços soltos que desenham o sonho
da criança em que adormeço

a guerra

enganam-se
os que procuram na guerra a vitória e a coragem
engana-se
quem procura na guerra grandes feitos e reconhecimento
enganam-se
se procuram a razão entre as razões da guerra

na guerra
encontrarão o terror e o ódio
toparão com a morte, com o medo e com a resignação
na guerra conviverão mano-a-mano com o sofrimento

há na guerra
um absurdo destino que empurra para a frente
o orgulho pateta que não deixa recuar
a cegueira que não vê a nobreza do viver e a miséria do matar

escutem do guerreio
o vazio que fica da morte
a vergonha escondida atrás da heroicidade
os olhares de agonia que o despertam no sono

vejam
o pranto de um pai e de uma mãe ante a morte do filho
o desespero em prostração de uma criança ante a morte dos pais

a gerra é uma vergonha que nunca foi proclamada

sobre a vida

i
a vida não tem tempo para nascer, gera-se no espontâneo, sem parto que sabemos ser um momento da vida;

ii
a vida pare-se a cada momento pelos significados das cumplicidades entre nós e o tempo.

caminhando na manhã

o ar perfumado de hoje
assobia-se na planície fresca
verão que se estende até ao mar
lá, onde a grandeza é a imensidão de uma onda
e o azul do céu rabiscado de voos que os pássaros declamaram.

o verde em volumosos tons que inspiram e expiram
brota dos castanhos de pó que geram a terra
uma forma de maternidade
quando molhada, amorna, exala um aroma a paz
que nos toma num movimento sentido de dentro
desvendamento de onde viemos e para onde iremos
sem viagem, nem caminho; passagem simples
caminhando na liberdade do ar e na companhia do vento
leves como as manhãs

segunda-feira, 28 de julho de 2014

é pelos sons que me embebedo
das coisas e dos silêncios
pela sonância me encanto
pelo poema
do arrastar da caneta no papel
dos pensamentos declamados como palavras

perguntei-me a mim mesmo
o verdadeiro significado de um verso
simples - respondi-me - fechei os olhos
ouvi a sonância das palavras
e arrepiei-me...
ainda o sorriso me despontava

sexta-feira, 25 de julho de 2014

omnipresente

para onde olhas eu estou
pequenino
acenando com o meu sorriso
o melhor que consigo
imaginar
para ti

quarta-feira, 23 de julho de 2014

a besta

o nome da besta
proclama-a pelo nome
expurga a besta
afasta-a
de ti, detesta ouvir
seu nome, indiferente ao ser
besta
a bestial
forma ou ser

sexta-feira, 18 de julho de 2014

do desapego

e se deixou ficar
sem desapego

até o do mundo dizer adeus
e tudo o que queria deu-se
o desapego

ao transpor a porta
nasceu o dia

pela morte (se) permanece
omnipresente, sempre
confronto em ausência confirmada
negação até à alternativa, memória
passado no presente, o que resta
omnipresente constante
constantemente

eternidade

viveremos até à geração seguinte
o cisne cantará o melhor e o pior da melodia
cujo mote compassámos
depois, caberemos inteiros com tudo o que é nosso
na moldura em uma parede, um canto, um móvel
até que o lugar se esvai em penumbras
sem derrocadas

a casa de deus

as gentes que entravam passavam em silêncio
seriam uma procissão
olhavam os tetos, procuravam o céu
retinham-se nos cantos, fotografavam encantos
alguns benziam-se outros posavam impregnados
de um místico devoto.
os sons eram de silêncios: sibilos de orações,
passos pousados e ruídos de vestuário,
rangeres de bancos, de portas e de dentes.
a janela filtrava a luz que entrava no templo
onde deus e a arte são íntimos.
as gentes sabiam-no do fundo de si mesmos.

trovador

corpo aparentemente franzino
de idade igual à minha, tudo em si se projeta;
a voz de música rola pela calçada hits da minha adolescência.
a guitarra que traz ao peito acompanha-lhe a voz
de um tom britânico de rua, de taberna, de povo.
por isso lhe assenta tão bem esta rua que vestiu.
povo é povo, sente puro e rude em todo o lado
qualquer que seja a música, a cidade ou a catedral.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

estreitura

quis fotografar a estreiteza das ruas
tem forma e textura. chamei-a estreitura.
entra-se e como quem se aproxima, de tudo:
das gentes, das coisas e das paredes das casas
— amigáveis, cumprimentam —
as janelas, as montras e as portas pestanejam
despertam-nos o olhar.
quando saímos delas, dessas ruelas,
é como sair de casa,
entramos num largo que faz de mundo
semicerramos os olhos
focando a distância e filtrando a luz
e a cidade é um lar vertido de dentro
das casas do peito dos olhos...

sem palavras

escrevo-te
entre a cabeça e o peito
não sei se é corpo
o que escrevo não tem palavras
tem borboleteios
tem chilreios e água
da fonte entoando
tem gente passando
palreios de corpos
arejos de alma
emoções que beberico
na esplanada um café e uma nata

quarta-feira, 16 de julho de 2014

luar

não pode tocar-se a lua
que nos toca
que a tomámos nos olhos
que a envolvemos, sem abraço

resplandecente,
ela o sente,
ela ousa e expõe-se cheia
e o olhar, nosso,
é crescente.

as estrelas se apagam
uma a uma

o recato dá-se a dois
se completa o momento:
o luar acontecente.

confesso

vivo no inóspito lado do não-sei-quê
meu lugar não aparece e a medida não é minha
nada me encontra
desconhece-me e é-me desconhecido

não vislumbro pontos nem cardeais de pensamento
em ordem, número ou qualquer outro entendimento

este lado - o do perdido - é-o em outro sentido
entendê-lo-ei ao renascer, bem depois de ter morrido

recuso ser fénix ou jesus cristo
sou um mero fariseu passando no fundo da agulha
ou almejando o céu

inapetência

i
a porta que se abria
acontecia nas costas;

ii
ao nascer-lhe o dia
doía de tão ofuscante;

iii
a noite se lhe derramava
sobre a ânsia e a solidão;

iv
a janela, de tão amarrotada
há muito nada inspirava
nem o ar passava por ela;

vi
o sofá se fez corcundo 
deformado profundo
molde do corpo cansado.

combustão

ardeu-me tudo, em fogo
de inferno, que era meu.
as cinzas se farão
ao vento
tingindo o negrume
do dia
sou eu

exaltação

sopram-se poemas
e bolas de sabão, desprendem-se
enlevos de fantasia, elevam-se
libertam aqui e ali salpicos de cristal
ao toque suave da mão que teimamos estender
não para agarrar, só queremos ter.
esta é a forma do desejo
e do riso que escapa nervoso-meigo
a quem toca a fantasia,
correndo e saltando por ela
ou nela, ou com ela,
sabendo que acaba e logo voltará;
lendo e relendo o poema
se amplia a poesia.

tudo o que nasce infinito nunca acaba

segunda-feira, 14 de julho de 2014

sexta-feira, 11 de julho de 2014

as manhãs têm sossegos que a elas pertencem
o sossego do acordar
o sossego tagarelo dos pássaros
e desperta em nós o dia que ainda não aconteceu

terça-feira, 8 de julho de 2014

ama-me
faz de mim o momento
do teu adormecer

ao sonhares
ver-me-ás aquele
que pintou um sorriso
em teu sono

ainda eu
te beijava o rosto
e já dormias

sábado, 5 de julho de 2014

corvo

há um pássaro negro que voa em mim
veste-me os olhos, adejam-me pensamentos
voejo em deslumbramento negro
dá-se o negrume de que me cubro
de noite até à noite

quinta-feira, 3 de julho de 2014

da iniciação

o meu experimentalismo
de ser
provador
dos sabores... as iniciais

soa-me a religião
se fosse de cristo
seria cristianismo

me inicio
até ao profundo
de palato desnudado
pronuncio sílabas
- sem palavras -
onde me demoro
e me atraso

retardo-me
orando as letras
numa só voz

ontem
pintei uma voz
soou-me...

hoje
nem escrevo
uma cor...

me inicio
à tona
onde nada principia


"quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar" - Sophia de Mello Breyner Andersen

leveza e amplitude

a flor se fez leve
queria pendular no vento
que também a fez rodar
bailou, a flor e gostou...
entregou o corpo à haste
e ao jardim, deu a alma

o vento gostou, e vai
e vem sem pêndulos, rodando
levando - levantando - as folhas
que no outono de fazem douradas
castanho de terra em pó
a flor já é semente
leve...
leve como a leveza que o movimento tem
cheia de vida, porém...

a raiz, ...era o princípio

quarta-feira, 2 de julho de 2014

vivo na solidão que as palavras têm
encanta-me.
nelas, por elas, com elas, atento
aos reflexos, desperto o olhar, toco-lhes
dedilho-as à passagem

por este deserto que há em mim
árido e inóspito, nada cria;
nele nada se cria.
o fogo que em mim arde
queima tudo, ainda em semente

beijo, pureza e poesia

a poesia de um beijo brota fervente
normalmente
à boca cheia, língua e lábios se amordaçam
e vocalizam
a melodia que as palavras desconhecem

fim

fim é, sempre foi,
algo que sinto em mim
dilacerante estar
que me arranca o peito
que antevejo sem ver

uno

aqueço-me na quentura tua
que recordo e guardo na alma
que foi minha
que é nossa

marinho em teu corpo bailando algas
solto na onda que tomei
que era tua
fez-se nossa

vício, poesia em estado puro

um cigarro
que fumo em pensamento
leva-me no vício,
enrola-me em círculos de fumo:
cachos de carateres encaracolados.
meus olhos amiudam-se sobre as memórias
das letras. nos fumos
abrem-se frestas cortadas a sol
aquecem-me, amorno-me no som das letras
que as palavras não proferem.
o fumo passa e se dispersa,
o sol roda e desvanece
atrás do monte das palavras
onde corre pura a poesia
no estado de ideia e melodia.

sábado, 28 de junho de 2014

amote até onde o amor pode ser
sem comprimento, sem distância, sem quantidade
um amor que é intensidade e momento

quarta-feira, 25 de junho de 2014

um homem toma num punhado toda a terra que pisa
no vento esvai-se o pó daquele momento

levadia

meus passos deixei-os na areia
abandonei-os. a nortada
fustigou-me o corpo
até ao rosto: o enlace
em que nos consagramos;
são assim os nossos encontros
bravos, encapelados...
os meus passos foram no mar

inconsistente

sou um arremesso de mim mesmo
em cada poema me inseguro
ao escrever não grito, nem choro
nem entusiasmo, não extasio.
não respiraria, se pudesse
sossegar-me-ia até à morte
e arremessar-me-ia
como sombra de uma brisa

terça-feira, 24 de junho de 2014

búzio

as ondas do mar se enrolam
em búzios, elegantemente
coloridos e luzentes
enovelam sonhos
que desatam em sons
e sussurram-nos ao ouvido.
o mar ribomba ao fundo
satisfeito
o búzio soa no peito

domingo, 22 de junho de 2014

incomensurável

sonho sempre
sempre que o mar é profundo
sempre que o céu é longínquo
os peixes e os pássaros pairam
em palavras, em versos
— elegantes —
e fim é só uma sílaba do infinito
que habita o poema

quarta-feira, 18 de junho de 2014

mãe
ensinaste-me histórias de animais
de meninos bons e de maus
eram eu, os meus anseios e os meus receios

mãe
que me vais ensinar hoje(?)
que ao fundo do jardim há uma árvore
ansiando uma história bonita

mãe
corro, correndo desalmado
descobrindo na árvore
mais uma história de mim

mãe
as tuas histórias sempre
terminam com o teu sorriso
quão linda sorris "FIM"

leituras

i
leio em modo de ócio
passos - voos - da manhã
leio um turista que vem
antecipo-lhe o passos
perdidos, atrás dos olhos
um corpo sobrevivendo à novidade
em êxtase hesitante
cansaço de peregrino
carrega as ainda não-memórias,
que o tempo ordenará,
religiosamente feliz

ii
leio o vagar de uma gaivota
rasando tudo o que quer
pousa em cume - imponente
fitou-me demoradamente
partiu, levou-me os olhos
deixou-me o olhar

divagando

quisera os sonhos fossem ondas
mar, em verde e azul prateados
rendilhado em véu de espuma branca
salpicos, brincando na areia
enrolando nos pés.
teus olhos correriam peixes;
formariam cardumes, os teus olhares,
que teceriam o horizonte em prata
povoado de sol, de vento e de gaivotas
encheriam as ondas que rebentariam
nas pedras, polidas, limpas e cintilantes
moldadas a água e a mar

era sonho..., quisera
o sal da lágrima é de mar

sobre pétala

era a pétala
o toque, a cor
o aroma
era o lugar do mundo
o encanto do universo

o que ensina um voo de abelha
um borboleteio
um bambaleio ao vento, flor
doação, gesto de paixão
florido no lar levita

na pétala há poesia nunca escrita

terça-feira, 17 de junho de 2014

a demanda

no resto de um dia
presente
um pôr-do-sol, sempre
de aberto radiante
a encoberto anuviado
nunca será distante
nunca será ausente
realmente
querer-se-á encontrado

saudade

no horizonte
os montes saltam sobre os telhados
as memórias saltam sobre o quotidiano
sobressaltos no horizonte

domingo, 15 de junho de 2014

pulsar

os olhos guardo-os no peito
juntos aos meus
no rosto plantei  janelas
a luz que irradia delas são olhares
dos olhos que se irmanam em mim
alvoroço de um pulsar

o que realmente interessa é aquilo que que se acredita: esse aquilo é a verdade.
o resto? que importa? por lá mora a mentira...

realmente importante

quero ser
uma existência pequenina
suave de vento — talvez
brisa — discreto,
de banalidade
cheia,
a frugalidade da calmaria
nascente de um sorriso em esboço
a vulgar felicidade
desprendida dos sentidos
dos meus amigos

quinta-feira, 12 de junho de 2014

de todas as dores
a mais dorida
chega-me
não sei como
nem sei de onde
sinto-a viver em mim

efémero acolhido

acolheu-se na lapela de um fato
preto, claro em cinza escuro,
um sorriso, pin de amarelo,
ou bandeira engalanada
quando a procissão que ia
no adro, passava.
antes mesmo que o pálio fosse visto
antes ainda da banda soada
caiu da lapela  o acolhido  creio
de empurrão, ou arrancado, e já
na calçada, o sapato que o pisou
agarrou-o, e no tacão o levou,
pisando-o, arrastando-o pelo chão

quarta-feira, 11 de junho de 2014

poema

onde a ave fez o ninho
onde a porta escancarou
onde o mar confidenciou
onde o rio pulou

onde a água tem aroma
e o sal abençoa
onde existe doce de água
onde a ave se sacia

o tempo
como todo o resto na vida
custa usar na míngua:
os ingratos últimos momentos

sobre o mistério da palavra

na poesia
arte do indizível
as palavras são sonância
uma melodia de fundo
e tomamos os significados
que enchemos e esvaziamos
das palavras, cheias,
que dispomos e compomos
ao som harmonioso das palavras

é uma arte a dois, de conivência
entre quem escreve e quem lê
só em cumplicidade se revela 
o inexplicável que o sentido tem

momentos não

um dia que devia não ter acontecido
um jeito no cabelo que estragou
um arranjo na jarra que a tombou
uma limpeza na moldura que a partiu
um arranjo na mesa e o copo derramou
um toque pessoal que desmoronou
momentos em que fomos a nossa desilusão

terça-feira, 10 de junho de 2014

que dizer de um homem
que escapa às vozes para ouvir os pássaros?
e de uma ave
que abandona o bando para pousar numa mão?

domingo, 8 de junho de 2014

terra de fragas

de onde nasci
as pedras eram duras
de pedra se faziam casas e lápides
monumentos
e outras moradias para as memórias

de onde nasci
o povo respeitava as pedras
a terra as plantas e tudo mais
deus conjugava as preces
que a vida era dura e incompreensível

de onde eu nasci
a terra era o cheiro a vida
os cantos escondiam as amarguras
que nasciam nos campos
ao lado do trigo

de onde eu nasci
a terra gemia a escravidão
de ignorância se tecia o véu
da servidão
de quem não nasceu senhor

de onde eu nasci
o tempo correu e tudo mudou
a terra tornou-se inculta
o senhor morreu, abandonado
da terra se fez monte

quadro

o sol não visitava a manhã
a passarada muda, andava
pelo chão picava aqui
ali bicava, migalhas
talvez de pão
tudo em sossego...
nem um som

a velha dava o que tinha
o regaço de rainha
dele voava pão
caía, rolando no chão
tagarelava uns mimos
desaparecidos na imensidão

sábado, 7 de junho de 2014

sábado à tarde

tarde de sábado, quase sete
o filme já visto, a tv está só
escorre a preguiça
inicio umas mini férias
aproveito o sabor da calma
que chega do cansaço
prefiro a que vem da paz

choveu, e o vento trouxe o sol
brincam com as sombras, todos,
e com os ramos das árvores.
fresco, o lá fora
aprazível
a cor é linda, o tom entardece
suavemente, como a preguiça
calmamente, como o cansaço

a tv abandonada fala em vão, já visto

um melro posa na árvore do fundo
ao centro, um chorão
perscruta à volta, pressente-me ao longe
sabe que o apanhei na imagem
e continua, a naturalidade de uma pose
como este texto que se sente gerado
letra a letra, entendendo as emendas
um e outro, elementos de um quadro
composição de um dia
espírito de um estado calmo
de sábado, pouco depois das 7 da tarde

quinta-feira, 5 de junho de 2014

se o dia te for pesado...
se tiveres de poisar o dia...
deixa uma parte de ti
de permeio entre o dia e o poiso
que os dias só serão teus
enquanto lhes tocares

andante

sonho até ao fundo do caminho, viajo
parto comigo mesmo
arrumo a partida em sonhos
a bagagem que se faz minha

viajar é assim
passear o sonho na avenida
apresentar-lhe os transeuntes e deixá-los entrar
e acompanharmos a paisagem

que a história é só uma, de viajem e de sonho
e o sonhador e o viajante são o mesmo narrador

mistério do beijo

beijos não se escrevem
nem se dizem
despontam
soltos, da entrega
pousam, de pluma
caem, de chapão
jorram, de nascente
humedecem, de orvalho
indescritíveis
mote de estrelas

incompreensível estado de ser feliz

o desconhecido era a arte que nos unia
o caminho que pisávamos com a satisfação de saltar nas poças
éramos crianças de olhos arregalados no horizonte
o sol nunca se punha e estava lá, sempre
de sorriso feito para nós
éramos piratas, dos bons, éramos pessoas heróis
éramos grandes, sem sabermos
que a nossa grandeza era ser o que éramos
e nem sabíamos o que éramos
sabíamo-nos felizes, e bastava
é-se feliz quando basta a felicidade para o ser
(feliz)
o sol ainda se detém no mesmo lado
seu sorriso permanece redondo de perfeição
hoje, temos a nostalgia de um passado feliz
e a felicidade, vinda não se sabe de onde
— não há mal nisso, sorri-me o pensamento
na verdade, que o que habita em nós não vem da lado nenhum
está lá!
o desconhecido de ser-se feliz, porque se é
razão intensa da felicidade em nós.
acontece passar a nostalgia; uma mirada complacente de-nós-para-nós
com esboço de sorriso colhido nos lábios e na ausência dos olhos

quarta-feira, 4 de junho de 2014

terça-feira, 3 de junho de 2014

partiríamos... vadios e errantes
que errar é a mais humana das virtudes
e vadiar a maior riqueza

segunda-feira, 2 de junho de 2014

dia poema

era luz, era cor, era perfume
era fruta, eram flores
vivazes, eram olhos
eram mãos, dadas, pousadas
inquietas, eram pombas
era sol em abóbada
era lago, fonte jorrada na praça
era dia
era dia poema que as palavras não contam
que em silêncio os olhos declamam
que no ar se semeia e se respira
era poesia
a poesia que faz o dia

domingo, 1 de junho de 2014

contorno movimento

li nos teus movimentos a ave
descobri o lirismo do voo
sei porque me paira o pensamento
vi onde converge o sol
compreendo o vento que te abraça
e se faz brisa
e porque arriva o perfume de mar

o que sei das gaivotas
sei o que buscaram em ti
o desejo de viver
o prazer de vadiar
e o amor ao mar

leio e releio o movimento
a ave
o voo
o poema
a brisa é sempre fresca
e o aroma de mar acentua-se
em essências, a cada passagem

outra face do óbvio

óbvio?
nem tudo é assim tão óbvio
não é óbvio que as árvores sejam poleiros das aves.
já vi pássaros com árvores nos bicos a caminho dos ninhos
eram arvores empoleiradas nos pássaros
com eles voavam
algumas batiam os ramos vigorosamente
intimamente sabiam que voavam
voavam mais que qualquer homem dentro de um avião...

não se diga que rancos não são árvores
se plantados na terra se fazem árvores frondosas
não seja o tamanho que defina a árvore
como se determina nos homens
afinal não é óbvio que um ranco não seja uma árvore
e, embora não o pareça, é obvio para as aves
serem poleiros de árvores que voam
que sentem o voo vigorosamente
é obvio.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

sobre sonhos

Sonho,
é somente uma parte do real
que aparentemente podemos modelar a gosto; e gostamos.
Então sonhamos
e o acontecer aproxima-se e nós abeiramo-nos dele,
e neste processo frenético de construção e desejo,
a extravagância convive com a utopia
e a desventura com a perseverança.
A este convívio ocorre retirarmos os afetos,
para não sentirmos a dor da perda e o desconforto da frustração;
então resulta a realidade,
sempre acética pela inevitabilidade: o ser/estar "sem tus nem mus".

Normalmente
tendemos a esquecer que sempre corremos por algo que ainda não aconteceu
e que damos por tão certo
que não lhe reconhecemos o devir próprio do sonho:
é a nossa impossibilidade de sair do imediato,
de nos projetarmos um pouco além daqui. E chamamos real
ao que ainda não aconteceu.
O tempo, o espaço e o sonho são curtos; têm a nossa perspetiva
de vida, que se recusa sonhar, que recusa o desconforto:
instala-se a incapacidade de arriscar.

Que arriscar implica uma perspetiva de futuro que só sonho tem.

desperspetiva

há algo em mim, sempre o soube,
que flui como as flores; não é perfume.
é verde rente ao chão; onde brota vida
que me refresca os pés; e me desprotege,
ao contrário dos sapatos,
e me revigoro, fresco, de flor

da terra regressa o eco das raízes
que a seu modo são flores nascidas terra adentro
aí suportam e alimentam as raízes viçosas
baloiçantes ao vento e, porque ganham cor, são flor

que pés desprotegidos ganham perspetiva

pó dos dias

porque só tinha uma vida
vivia-a avidamente,
sentenciava-se

os pássaros sabiam que não era vida
era só o frenesim
que levantava dos dias

que se sacode, na muda de roupa
que fica lá fora ao fecho da porta
que, como o pó, se espana à janela

quinta-feira, 29 de maio de 2014

estados d'água

gota a gota pequenina
cresceste e correste até mim
enxurrada. assustas-me mais
que o escuro da noite
que te brotou
isolas-me
invades-me
pequenina como sempre
cavalgas tudo
das ondas que te fizeste

aprendi a amar-te
lembras-te que éramos companheiros?
todas as estações
eu de dentro aguardava-te
tu de fora divertias-te
no meio nosso, a janela
nela te projetavas, corrias e escorrias
mostravas-me o mundo ao contrário
nas gotas que eras tu
trocávamos segredos de amigos
secretos...
uma vez menti-te e tu descobriste
zangada, fizeste-te enxurrada
e com ela levaste-me a serenidade
de confiar incondicionalmente em ti
não percebeste que eu folgara
amigos, por vezes, enganam-se por diversão pura
assustaste-me
e continuaste minha amiga muito querida
intolerante a brincadeiras

hoje afloras o meu medo
não te sorrio
temo que me leves algo importante
temo-te, achando que já me perdoaste
mas chegas-me suja sem o cristalino
que teu brilho tem
corres barulhenta de folia ou de raiva?
não sei
tu corres e eu temo-te
sou eu quem não te perdoará

abandono

olho(-te)
pela janela encaro o escuro
invade-me essa luz de farol de carro velho
tudo em mim é velho como eu e a roupa que visto
e a janela que assomo à luz desse farol
e o escuro, da noite que surge sem ser aguardada
mas chega e olho-o nos olhos que não tem
só isso!... e acerca-se velho
como o meu rosto.

há um cão que me olha nos olhos
tomei-o por meu amigo
contemplou-me
que saudades de um olhar, eu tinha...
urinou no muro e partiu; poderei censurá-lo
se lhe devo o olhar que trocou comigo?

chamam-me louco
desculpam-me por ser quem sou
quando sou só solitário e velho
sem o direito a existir ancião
a idade mo nega, os olhos de outrem também.
meus dias perderam a nobreza
de merecer um olhar, procuro-o
à janela, na escuridão
no farol de um carro
na atenção de um cão.