domingo, 30 de março de 2014

à contra-luz

a luz
recortada por teu corpo
fez-se iluminada
de uma forma
que nunca lhe fora dada

ápice do renascer

as montanhas
descritas pelo mar
são ondas

intercaladas por vales
intervalos 
de montes e de vagas

lugares
de marinheiros e de eremitas

onde a morte e a vida
se olham
e oram um poema

sexta-feira, 28 de março de 2014

fluêncio

escrevo
uso palavras
que acentuo com silêncios
também há os silêncios das palavras
por eles me adentro
até ao barulhar de um rio corrente
que continua nas veias
que carreia a frescura a pureza
a alegria o reluzente das almas
dos olhares dos sorrisos dos peitos
dos pensamentos das nascentes
e escrevo
em silêncios e palavras
que apanho no rio

quinta-feira, 27 de março de 2014

sobre milagres

os milagres - que existem! - fazem-se de coisas terrenas e têm força celestial.
quem não conhece o milagre de um sorriso? e o do calor de um toque? e o do tom de uma palavra?
milagre, é este indizível tão humano, que inspira os corpos e os torna celestes.

entre mim e ti
mantemos a vogal
mudamos na consoante
vogamos as consonâncias

terça-feira, 25 de março de 2014

não ser

ah...
é que achei que te tinhas perdido
nas linhas mestras desse padrão
de vida
tecido de um fato, abotoado
botão a botão
com uma... e outra mão
que bem te assenta 
tão competente
eleva-te a fronte
ergue-te o olhar
e o nariz que empina
frio olhar
ave de rapina

secaram-te as mãos
os pés
agora de escamas
as unhas são garras
teu fato a plumagem
grasnas uns ismos
pareces perdido

não te perdeste
disseste
nada encontraste
nem dentro de ti
vazios não se perdem
nem se orientam
em linhas mestras
vazio

resta-te o entulho
o que não sentes
o que transportas
vejo-o eu
vemo-lo todos
excluindo tu
vazio até de olhares

vazio como o olhar teu

lembras-te da tua mãe
lembras-te como ela te amou
lembras-te dos sonhos
com que te embalou
penteou o cabelo
te beijou
nas idas para a escola
no aconchego do lençol
recordas-te como tudo era cheio
cheio de sono
cheio de amor
cheio de esperança
cheio de carinho
cheio de tudo...
cheio que se esvaziou
até ao nada
vazio do ser
melhor, o não ser

sexta-feira, 21 de março de 2014

ah! seja este dia de poesia
não interessa a cor
nem a chuva
nem a paz nem o amor
nem o sol
se faz frio ou calor
que haja poesia neste dia
seja simplesmente dia!

quarta-feira, 19 de março de 2014

compulsão

dói-me
esta não escrita
mói-me
deste devir que não desemboca
consome-me
esta palavra entalada
rói-me
este desejo impossível
estrangula-me
esta ânsia fantasma
estupra-me
esta necessidade infiel
de brotar
o que não me corre
de expulsar
o que não tenho
de berrar
quando meus gritos são vazios
de escrever
quando as letras não conjugam...
há poemas
que não se escrevem

que no indescritível
há uma certa poesia
pungente!

sábado, 15 de março de 2014

miniatura

se voltasse a ser criança
desobedeceria
escreveria em todas as paredes
movimentos amplos
voos largos de gaivota

eu
que aprendi a miniaturizar-me
em folhas de papel.

quinta-feira, 13 de março de 2014

saber de rio

antes de tudo
iremos. — onde?
não importa
desde que se vá
mesmeiro movimento
antes
antes de tudo
antes de todos
quando só interessa chegar primeiro
sem que se saiba o destino
este país corre
corre tanto
e não aprende com os rios
que se arejam
cursam e resplandecem
e desaguam

seco

e os rios... e se os rios secassem?
talvez os rios sequem
de algas de peixes
de flores e de água
de amantes
talvez os rios sequem de mar
talvez sequem de lágrimas
de cintilos de sol
de estrelas e de luar
talvez os rios sequem
e tudo mais secará
os homens, os jardins
e o mar e as naus
os sonhos
a chuva será árida
deixará de escorrer na vidraça
amontoar-se-á no caixilho
e os peixes de tão secos voarão
como folhas de outono
que o seco vento erguerá
as árvores secarão
antes mesmo de crescerem algas
o mar será um deserto
inabitado, sem ilhas
será mar de montanhas e cordilheiras
secas, sem rios
os navios estacionarão na avenida
seca
sem bebedouro de aves
sem lagos para patos e peixes
as pessoas andarão secas
serão secas
não chorarão
que de lágrimas se fazem rios
e os rios secos estão
e estarão!

da alma

se quiseres deitar-me-ei
em ti
bem no meio de ti
entre o teu ser e o teu olhar
aroma a seio

se pudesse deitar-me-ia
lado-a-lado à tua alma
as almas nunca se deitam
elevam-se
aí mesmo descansam
convivem e crescem
elevadas
e este corpo que quer deitar-se
menos pelo cansaço
quer intimidade aconchego
até à alma
que nunca vi
que respeito como o melhor de mim
com aroma a seio, teu


sobre fontes

... fosse a fonte seca...

da poesia sangraria
a pureza da água
cristalina de sol
ela mesma seiva de poesia

vs de vou

vou...
vou de viagem
vou vogando
vou voando
vou vagueando
vou viajando
vou variar
vou de vadio
vou de ir
ir de voltar
vou de voltar

retrato antigo

restará sempre um relevo
na fotografia antiga
arrecadada em fundos
de alma
de álbum
de parede
de gaveta
de memória
de uma história

restará sempre um relevo
que os olhos tocarão
e chamarão os dedos
para acariciar

levar-te-ei comigo
fica a promessa
de quem se despede
retrato
um dia voltaremos a conviver
de ti preciso dos relevos
o relevante de nós

quarta-feira, 12 de março de 2014

vida criação

conheces?
aquele momento
em que nasce a vida
aquele lugar
onde a vida desponta

que a vida
nasce num momento
desponta num lugar
e enquanto se cria
não há espaço
nem há tempo
há criação

chamamento

bate-me a chuva
à janela, namora-me
trespasso a vidraça
pulo com ela gota a gota
escorremos bravios
galgamos o destino
cavalgamos o sonho
que de nós nasceu

minha sombra

entre mim
e a sombra de mim
algo existe, sim
há o sol, sim
do outro lado de mim
e do sol e de mim
nasce, sim
um arremesso escuro de mim
minha sombra, sim

terça-feira, 11 de março de 2014

livre

partirei
na bagagem levarei
comigo pensamentos
meus
colhidos no caminho

a paixão acontece
quando olhamos e vemos bem
nitidamente bem
o lado bom de quem amamos

mais de que ter uma oportunidade
queria ser a tua oportunidade

à sombra de... (ensombrado)

acorda
deixa que o tempo irrompa de ti
que os ponteiros se te adiantem
que a voz te saia antes da boca se abrir

acorda
ensurdece-se-te com os pássaros
fere esse silêncio de morte
desperta a árvore em que te abrigas
deixa-a chegar à primavera
florir ensombrar crescer
solta-a dessa esteira em que te abanas
como pêndulo de um relógio

segunda-feira, 10 de março de 2014

no horizonte
na linha do recreio
saltam poemas
drapeiam folhas garridas
agitam-se ventos de poesia
ora sabem a brisa
ora soam a ventania

saudade

saudade
palavra aberta
à tristeza
desponta doce
entre o amor e a dor
pronúncia de sal
de mar de lágrima partida

morrerei
quando a força me deixar
deixar-me-á
sem que precise pedir-lhe
e não se despedirá

domingo, 9 de março de 2014

as mensagens importantes devem ser escritas em suportes susceptíveis à erosão do tempo;
gravar-se-ão nas memórias e atualizar-se-ão.

lugares de poesia

há poemas que são como casas
nelas há lugar para tudo
são lar que revisitamos
são moradas onde nos instalamos
murmurando aconchego

outros poemas são varandas soalheiras
como eiras
neles tudo é amplo
resplandece quente
outono verão semente

alguns poemas são quarto escuro
sem janela, talvez despensa
abafados de escuridão
arte em ar insalubre
desconforto dor e solidão

os poemas tipo quartos
soam a recolhimento intimidade
emolduram sorrisos lágrimas êxtases
aconchegam à noite
iluminam-se todas as manhãs

há poemas salas de jantar
repasto a ser declamado
aprecia-se à vista
degustam-no os sentidos
vigoroso, proclamente, recitado

o poema sala de estar, canto de ler
é intimista, desvenda-se
confessa-nos segredos nossos
sussurros movimentos silêncios
suaves doces profundos

há poemas de jardim
garridos, povoados de flores
aves, insetos, amores
sol, agitações ondulantes
têm bancos horizontes amantes

sexta-feira, 7 de março de 2014

talvez

i
talvez queiras escrever-me...
talvez...
talvez queiras escrever-me algo
à mão... com a tua melhor caneta
aquela que te faz a escrita redondinha
lembra-te balões de diálogos
rio-me da tua ideia: letras-diálogos
(só os balões) que decifraremos
que poema...
poesia - reforças-me
aguardo a tua escrita e penso:
talvez queiras escrever-me...
talvez...

ii
tens uma caneta azul
lindo aquele azul
estranhamente lindo
dizes ter a cor do mar
para mim é um azul teu
o teu azul!...
nele vejo os teus olhos
entre o verde-acastanhado
e o castanho-esverdeado
com azul
os teus lábios, mornos
moldáveis ao meu sonho
com azul
o teu toque suave no papel
que me inspira
em azul
a tua dedicação concentrada à escrita
ainda que seja uma nota em post-it
em azul
e quando esse azul teu
me é dirigido
é o teu azul para mim
como os beijos
(em azul)
talvez queiras escrever-me...
talvez...

iii
talvez uses a tua caneta permanente
emendas-me, sorrindo, como sempre
permanente é a tinta, não a caneta
para mim, permanente é esse ato de escrita
ficam-me gravados cada um dos teus balõezinhos
cheios de sentido
prenhes de ternura
que recebo
dessa caneta que vejo permanente
por mais que a tinta se desbote
ou se dilua se molhada
será permanente como tu
que...
talvez queiras escrever-me...
talvez...

iv
talvez queiras escrever-me
e pegues uma folha de papel
singela, como a simplicidade
leve do teu toque
que poisa
em pontas de dedos
amparo de mão
que fixa o papel numa carícia.
eu também me imobilizo
ante uma carícia tua
como o teu jeito redondinho de escrita
em balões de sonho azul
como o teu azul
que tão bem combina
com o tom amarelado do teu papel
conforto de cor
sol do entardecer
morno como tu
talvez queiras escrever-me...
talvez...

v
talvez queiras escrever-me
uma confissão de olhares
talvez me olhes
e eu não precise perguntar nada
e tu não digas mais nada
porque ouço, sinto e toco
teu olhar com meus olhos
com a força leve de uma carícia
terna, tão terna
que não quereremos saber mais nada
nada mais
e me entrego ao teu olhar
que nunca soube
se verde-acastanhado
se castanho-esverdeado
em tons de azul
redondinho como trajetos de carícias
presentes de carinho
que se querem escritos
em papel tom de entardecer
este poema que nos olhamos
talvez queiras escrever-me...
talvez...

vi
talvez queira escrever-me uma carta de amor
uma carta de sentimentos
que nunca pronuncia amor
porém, ama intensamente
tão intenso
que humedece os dedos de quem a lê
que os olhos se perdem na carta
e seja qual for o sentido e a direção
a leitura encontrará um calafrio suado
que baralha as palavras
que funde o pensamento
que incha o peito a cada batida
o ar não entra e a palavra não sai
a lágrima borbulha
redondinha
azul
e pinga
aquele papel conforto entardecer
e a tinta a que chamas permanente
agora escorre, e lá permanece
misturada com um pouco de mim
e a carta que era tua - que a escreveste
que era minha - que ma enviaste
agora é nossa
nela se misturaram emoções
tuas e minhas
como um beijo
talvez queiras escrever-me...
talvez...

vamos

viemos
agora vamos
sem que saibamos
para onde ir
sem direção
o impossível sentido

agora vamos
por aí fora
urdindo o destino
no presente
onde se constroem utopias
com que teceremos o futuro

quinta-feira, 6 de março de 2014

ordem de palavras

havia palavras de ordem
eram palavras ordenadas
que sem ordens reclamavam
o que estava na ordem do dia

eram ordens em palavras
perfiladas ordenavam
contra a ordem do dia
e as palavras de ordem
que sem ordens reclamavam

árido

neste chão não se criam flores
não nascem regatos
e os rios desapareceram

neste chão não voam libélulas
as borboletas partiram
e as aves migraram

neste chão, feito de pó
as raízes não crescem
os olhos secaram

e ardem, ao sentir este chão

a sensação de fim desperta em nós um sentimento de saudade; abre-lhe a porta, porque sempre esteve em nós esta manifestação de passados

brancoesia

queria escrever alternativo
tentei, esqueci o alfabeto
rabisquei pássaros nas margens do livro
que voaram com o poema
na página branca tudo se escrevia
aquele branco de poesia

quarta-feira, 5 de março de 2014

olhos fitos

se o que dizem os olhos
fossem palavras de falar
o peito não ribombaria
a face não ruboresceria 
no cruzamento do olhar

medita

fecha as luzes
abre as janelas
aprecia a escuridão
das palavras nunca ditas;

um dia serás maior
pelos silêncios 
a que te obrigas,

guardando os impropérios
no cofre inchado.

quando lhe abrires a porta
estará vazio de ressentimento
sem arrependimento.

puro

ocorre-me...
em nós, algo
é riacho
água corrente
barulha nas pedras
cintila ao sol
banha o musgo...

o que sabemos mutável
sentimo-lo eterno

teus olhos

teus olhos profundos
negros
dois poços
escuros tão fundos
vazios de tudo
neles luzia
um cintilo de água fria
um reflexo cortado
por voo do corvo
teu companheiro de olhar
gralha dilacerante
berro insatisfeito

a profunda negrura
que nasce em teu peito

segunda-feira, 3 de março de 2014

caminho

ante a estrada
percorro-a com os olhos
atravesso-a a passo
desnuda-me, ela, as margens
e fazemos o caminho
em trajetos de borboleta
ao som de um assobio
ou de um canto de pássaro

domingo, 2 de março de 2014

esfumar-se

mata-me, se puderes, deixa-me morrer em ti.
depois apaga-me de ti e do teu céu estrelado. jamais serei estrela;
jamais cintilarei, as alturas não são para mim
e, sendo astro, inquietaria todos os outros. por isso mata-me, se puderes.

não me faças funeral, deixa que os corvos me comam,
pois precisam alimentar-se de entranhas como as minhas, malévolas,
enfeitiçadas de vergonhas, rancores e outras bruxarias negras. que sequem as peles
e carnes sobrantes, que fiquem os ossos ressequidos,
que quebrem, e tudo se esboroe e vá na ventania ancorar-se na escuridão. pessoas como eu
convivem bem com a escuridão e lá devem permanecer para sempre; para todo o sempre.
sacode-te de todas as poeiras,
que nenhum grão de pó de mim te fique nas vestes ou no corpo.

depois apaga-me. apaga-me dos muros, das paredes, das molduras
e a seguir das fotos, apaga-me da mesa, do sofá, do teu corpo
e, acima de tudo, das recordações e das tuas memórias
e olha a vida como uma corrente sempre presente
um grande presente acontecente:
eu sairei do teu tempo e levarei as mágoas comigo.

mata-me, deixa-me morrer em ti
e desaparecerei, por bem, para sempre.

sábado, 1 de março de 2014

a metáfora do vento
tem brisa
para que se imagine a leveza;
tem furacão
para descrever "andar pelos ares"
o que é outra metáfora

batismo de sol

ao sentir o sol
a pele amorna
entranha-se, o sol
invade-nos
crepitamos, por dentro
do peito ao corpo
esgueira-se, o sol
pelos olhos
pelo sorriso
nos movimentos
recorta-se a aura
que o sol encheu