terça-feira, 29 de julho de 2014

da palavra não dita

embargo de voz é uma forma de palavra encalhada;
a garganta dói dilacerante,
ferida de arestas da palavra que força a saída.

já o peito dói de esforço carregado profundo,
o peso de empurrar a palavra que não sai
e cai, retorno contundente, rebentando por dentro
o peito dorido.

um peito rebentado baterá sempre aberto e ferido;
ensurdecedor, o pulsar dum coração partido.

ser poeta é acreditar em banalidades como a utopia, a liberdade, a honra
o amor próprio, o amor aos outros...
e, se tal não bastasse, poeta escreve sobre essas banalidades invocando futilidades
como voos de pássaros e de borboletas, marulhos de mar e de rios
azuis que nasceram celestes, verdes sempre naturais
e a felicidade, que só os patetas conhecem,...
diz-se que os poetas também

mar

mar
é onde nos espraiamos
primeiro o olhar
depois o espírito
e então o corpo
- sem que saibamos como -
esculpimo-nos praia límpida de olhos e de água
cintilamos rocha banhada de sol e de ondilhas
o odor é de sal e de iodo
as algas sempre drapeiam embaladas na brisa
vestimos o corpo franzino de mar rendilhado
espuma
estremece a alma de tão marinha se vê
à transparência de um voo
que os voos transparecem os pensamentos das aves
por isso são coloridos
é inquieta a serenidade que nos fará voltar

da sonância

não sei quanto me pareço com o que escrevo
das ondas e dos voos
das cores e dos brilhos
do sossego de pairar e de mim

nem sei quanto me pareço com o rabisco
que desenha meu nome
e vem o retrato que olho e remiro
e não me reconheço

são as vozes - as sonâncias - que me encantam
não me nomeiem
musico-me nelas e nascem-me poemas
traços soltos que desenham o sonho
da criança em que adormeço

a guerra

enganam-se
os que procuram na guerra a vitória e a coragem
engana-se
quem procura na guerra grandes feitos e reconhecimento
enganam-se
se procuram a razão entre as razões da guerra

na guerra
encontrarão o terror e o ódio
toparão com a morte, com o medo e com a resignação
na guerra conviverão mano-a-mano com o sofrimento

há na guerra
um absurdo destino que empurra para a frente
o orgulho pateta que não deixa recuar
a cegueira que não vê a nobreza do viver e a miséria do matar

escutem do guerreio
o vazio que fica da morte
a vergonha escondida atrás da heroicidade
os olhares de agonia que o despertam no sono

vejam
o pranto de um pai e de uma mãe ante a morte do filho
o desespero em prostração de uma criança ante a morte dos pais

a gerra é uma vergonha que nunca foi proclamada

sobre a vida

i
a vida não tem tempo para nascer, gera-se no espontâneo, sem parto que sabemos ser um momento da vida;

ii
a vida pare-se a cada momento pelos significados das cumplicidades entre nós e o tempo.

caminhando na manhã

o ar perfumado de hoje
assobia-se na planície fresca
verão que se estende até ao mar
lá, onde a grandeza é a imensidão de uma onda
e o azul do céu rabiscado de voos que os pássaros declamaram.

o verde em volumosos tons que inspiram e expiram
brota dos castanhos de pó que geram a terra
uma forma de maternidade
quando molhada, amorna, exala um aroma a paz
que nos toma num movimento sentido de dentro
desvendamento de onde viemos e para onde iremos
sem viagem, nem caminho; passagem simples
caminhando na liberdade do ar e na companhia do vento
leves como as manhãs

segunda-feira, 28 de julho de 2014

é pelos sons que me embebedo
das coisas e dos silêncios
pela sonância me encanto
pelo poema
do arrastar da caneta no papel
dos pensamentos declamados como palavras

perguntei-me a mim mesmo
o verdadeiro significado de um verso
simples - respondi-me - fechei os olhos
ouvi a sonância das palavras
e arrepiei-me...
ainda o sorriso me despontava

sexta-feira, 25 de julho de 2014

omnipresente

para onde olhas eu estou
pequenino
acenando com o meu sorriso
o melhor que consigo
imaginar
para ti

quarta-feira, 23 de julho de 2014

a besta

o nome da besta
proclama-a pelo nome
expurga a besta
afasta-a
de ti, detesta ouvir
seu nome, indiferente ao ser
besta
a bestial
forma ou ser

sexta-feira, 18 de julho de 2014

do desapego

e se deixou ficar
sem desapego

até o do mundo dizer adeus
e tudo o que queria deu-se
o desapego

ao transpor a porta
nasceu o dia

pela morte (se) permanece
omnipresente, sempre
confronto em ausência confirmada
negação até à alternativa, memória
passado no presente, o que resta
omnipresente constante
constantemente

eternidade

viveremos até à geração seguinte
o cisne cantará o melhor e o pior da melodia
cujo mote compassámos
depois, caberemos inteiros com tudo o que é nosso
na moldura em uma parede, um canto, um móvel
até que o lugar se esvai em penumbras
sem derrocadas

a casa de deus

as gentes que entravam passavam em silêncio
seriam uma procissão
olhavam os tetos, procuravam o céu
retinham-se nos cantos, fotografavam encantos
alguns benziam-se outros posavam impregnados
de um místico devoto.
os sons eram de silêncios: sibilos de orações,
passos pousados e ruídos de vestuário,
rangeres de bancos, de portas e de dentes.
a janela filtrava a luz que entrava no templo
onde deus e a arte são íntimos.
as gentes sabiam-no do fundo de si mesmos.

trovador

corpo aparentemente franzino
de idade igual à minha, tudo em si se projeta;
a voz de música rola pela calçada hits da minha adolescência.
a guitarra que traz ao peito acompanha-lhe a voz
de um tom britânico de rua, de taberna, de povo.
por isso lhe assenta tão bem esta rua que vestiu.
povo é povo, sente puro e rude em todo o lado
qualquer que seja a música, a cidade ou a catedral.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

estreitura

quis fotografar a estreiteza das ruas
tem forma e textura. chamei-a estreitura.
entra-se e como quem se aproxima, de tudo:
das gentes, das coisas e das paredes das casas
— amigáveis, cumprimentam —
as janelas, as montras e as portas pestanejam
despertam-nos o olhar.
quando saímos delas, dessas ruelas,
é como sair de casa,
entramos num largo que faz de mundo
semicerramos os olhos
focando a distância e filtrando a luz
e a cidade é um lar vertido de dentro
das casas do peito dos olhos...

sem palavras

escrevo-te
entre a cabeça e o peito
não sei se é corpo
o que escrevo não tem palavras
tem borboleteios
tem chilreios e água
da fonte entoando
tem gente passando
palreios de corpos
arejos de alma
emoções que beberico
na esplanada um café e uma nata

quarta-feira, 16 de julho de 2014

luar

não pode tocar-se a lua
que nos toca
que a tomámos nos olhos
que a envolvemos, sem abraço

resplandecente,
ela o sente,
ela ousa e expõe-se cheia
e o olhar, nosso,
é crescente.

as estrelas se apagam
uma a uma

o recato dá-se a dois
se completa o momento:
o luar acontecente.

confesso

vivo no inóspito lado do não-sei-quê
meu lugar não aparece e a medida não é minha
nada me encontra
desconhece-me e é-me desconhecido

não vislumbro pontos nem cardeais de pensamento
em ordem, número ou qualquer outro entendimento

este lado - o do perdido - é-o em outro sentido
entendê-lo-ei ao renascer, bem depois de ter morrido

recuso ser fénix ou jesus cristo
sou um mero fariseu passando no fundo da agulha
ou almejando o céu

inapetência

i
a porta que se abria
acontecia nas costas;

ii
ao nascer-lhe o dia
doía de tão ofuscante;

iii
a noite se lhe derramava
sobre a ânsia e a solidão;

iv
a janela, de tão amarrotada
há muito nada inspirava
nem o ar passava por ela;

vi
o sofá se fez corcundo 
deformado profundo
molde do corpo cansado.

combustão

ardeu-me tudo, em fogo
de inferno, que era meu.
as cinzas se farão
ao vento
tingindo o negrume
do dia
sou eu

exaltação

sopram-se poemas
e bolas de sabão, desprendem-se
enlevos de fantasia, elevam-se
libertam aqui e ali salpicos de cristal
ao toque suave da mão que teimamos estender
não para agarrar, só queremos ter.
esta é a forma do desejo
e do riso que escapa nervoso-meigo
a quem toca a fantasia,
correndo e saltando por ela
ou nela, ou com ela,
sabendo que acaba e logo voltará;
lendo e relendo o poema
se amplia a poesia.

tudo o que nasce infinito nunca acaba

segunda-feira, 14 de julho de 2014

sexta-feira, 11 de julho de 2014

as manhãs têm sossegos que a elas pertencem
o sossego do acordar
o sossego tagarelo dos pássaros
e desperta em nós o dia que ainda não aconteceu

terça-feira, 8 de julho de 2014

ama-me
faz de mim o momento
do teu adormecer

ao sonhares
ver-me-ás aquele
que pintou um sorriso
em teu sono

ainda eu
te beijava o rosto
e já dormias

sábado, 5 de julho de 2014

corvo

há um pássaro negro que voa em mim
veste-me os olhos, adejam-me pensamentos
voejo em deslumbramento negro
dá-se o negrume de que me cubro
de noite até à noite

quinta-feira, 3 de julho de 2014

da iniciação

o meu experimentalismo
de ser
provador
dos sabores... as iniciais

soa-me a religião
se fosse de cristo
seria cristianismo

me inicio
até ao profundo
de palato desnudado
pronuncio sílabas
- sem palavras -
onde me demoro
e me atraso

retardo-me
orando as letras
numa só voz

ontem
pintei uma voz
soou-me...

hoje
nem escrevo
uma cor...

me inicio
à tona
onde nada principia


"quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar" - Sophia de Mello Breyner Andersen

leveza e amplitude

a flor se fez leve
queria pendular no vento
que também a fez rodar
bailou, a flor e gostou...
entregou o corpo à haste
e ao jardim, deu a alma

o vento gostou, e vai
e vem sem pêndulos, rodando
levando - levantando - as folhas
que no outono de fazem douradas
castanho de terra em pó
a flor já é semente
leve...
leve como a leveza que o movimento tem
cheia de vida, porém...

a raiz, ...era o princípio

quarta-feira, 2 de julho de 2014

vivo na solidão que as palavras têm
encanta-me.
nelas, por elas, com elas, atento
aos reflexos, desperto o olhar, toco-lhes
dedilho-as à passagem

por este deserto que há em mim
árido e inóspito, nada cria;
nele nada se cria.
o fogo que em mim arde
queima tudo, ainda em semente

beijo, pureza e poesia

a poesia de um beijo brota fervente
normalmente
à boca cheia, língua e lábios se amordaçam
e vocalizam
a melodia que as palavras desconhecem

fim

fim é, sempre foi,
algo que sinto em mim
dilacerante estar
que me arranca o peito
que antevejo sem ver

uno

aqueço-me na quentura tua
que recordo e guardo na alma
que foi minha
que é nossa

marinho em teu corpo bailando algas
solto na onda que tomei
que era tua
fez-se nossa

vício, poesia em estado puro

um cigarro
que fumo em pensamento
leva-me no vício,
enrola-me em círculos de fumo:
cachos de carateres encaracolados.
meus olhos amiudam-se sobre as memórias
das letras. nos fumos
abrem-se frestas cortadas a sol
aquecem-me, amorno-me no som das letras
que as palavras não proferem.
o fumo passa e se dispersa,
o sol roda e desvanece
atrás do monte das palavras
onde corre pura a poesia
no estado de ideia e melodia.