terça-feira, 30 de setembro de 2014

perfeito

da minha janela
há um campanário que me habituou às horas
todos os quartos
chega e solta as badaladas
todas perfeitamente iguais
perfeito, dir-se-ia

em cada face da torre
há um relógio
4 ao todo envergando as horas
também iguais
perfeitamente

da minha janela
há 2 faces do campanário
e mais 2 que adivinho
todos os lados são iguais
perfeitamente iguais

por cima do campanário
há uma cruz
também ela perfeitamente igual
a todas as outras
e as pessoas que entram na igreja
na base do campanário
são muitas e iguais
perfeitamente iguais
e quando oram
são perfeitas e iguais
as orações e as pessoas

e o campanário
que é único na minha janela
é perfeitamente igual a todos os outros
também perfeitos na sua existência

finalmente a minha janela
que me é exclusiva
é perfeitamente igual a todas as janelas
erigidas nesta cidade
mas tem uma vista única
perfeitamente

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

a morte é uma entranha em crescimento
entranha-se pela alma e vence no corpo...
a memória (coletiva) é um artifício antigo para vencer a morte

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

caos

algures
no indefinido
- ponto do inexplicável -
suspira em mim
um desejo quase neurótico
pela palavra bailarina. sufoca-me
a ideia que se abotoa desaparelhada
a forma que não serve
o quente da fricção
o ritmo sem melodia
a mensagem que não derrama
a criação que não se abeira
...
e tanto que tenho para dizer
sem que saiba, ainda, o quê...

envoltura

de amor
enchemos as mãos
de corpo
que derramava
ou se derramava
caía solto
ao encontro das mãos

fragmentos

i
da minha janela
o que vejo sei que existe
ainda que em mim, só, da forma como vejo
desconheço o olhar de outrem
ignoro-o pela condição de não o sentir
tão somente o adivinhar
ou ver como, que é outra forma de adivinhação.
...
em frente percorrem, as pessoas: é uma avenida
ao lado desenvolve-se um prédio: uma gaiola
por detrás o azul celeste do mar.

a minha tendência pelo mar
os meus caminhos desaguam nele
um dia começaram lá, era eu criança
e meus ouvidos alcançaram ser búzios
fiz dele gente e ele gente me fez
o desapego sempre meu
a paixão sempre minha
o acolhimento sempre dele
2 entidades
2 acontecimentos
2 pessoas
eu e ele
2 pronomes pessoais
no meio o tu
pronome que usamos entre nós
...
as nossas palavras não se proferem
surgem
expandem-se
espraiam-se
estrondam-se
brisam-se
como tudo entre as pessoas...


ii
as bordas da minha secretária
depois o abismo que me afasta da floresta em frente
como invejo os pássaros
como gostaria de deslocar-me em voo
como gostaria de não andar de não me mover a passo
como gostaria de pular quando não voasse
como gostaria que meu corpo se deslocasse
na mesma forma que meu espírito...


iii
na avenida
as pessoas caminham - palmilham - por obrigação
na cidade tudo acontece por obrigação.
há uma ordem que obriga
até os actos mais voluntários
como o sentar num banco de jardim
só para ver passar o que passa.
a obrigação é a ordem da cidade
por isso se arrastam as pessoas
de rojo atrás de cada passo
o corpo não se impulsiona
o pássaro da gaiola não sabe voar
a galinha - sendo pássaro -  não ousa voar...

iv
na minha janela
há um casulo pendurado
bomboleia ao vento
invade-o um ronco de autocarro
que nele ecoa e se amplia
estremece-o
embrião de vida
selado
esforço último de lagarta
a existência dedicada à metamorfose
...
ao homem nunca o entendi
como ser de metamorfoses
muda-se, certo!
transforma-se, concordo!
porque renasce após morrer
de cada vez muda de religião
refaz seu deus e as tréguas consigo mesmo
é um litígio doloroso de mudança
sem calendário nem genética
e nada sei de casulos

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

sábado, 20 de setembro de 2014

encontrara a paz 
surpreendeu-o a ausência de tom no branco
compreendeu porque a rendição e a paz têm a mesma cor

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

quando o poema não é mais
que a sombra das palavras
apanhadas ao dizer
o flamejo que em teus olhos brinca

leio o branco
entre as linhas ponho a cor
onde as meninas crescem radiosas
e se franzem as pálpebras em sorriso

há felicidades que só os olhos pequeninos descrevem bem

terça-feira, 16 de setembro de 2014

ditador

as linhas do rosto inoxidáveis
cinzas frias e duras de aço 
o gume no olhar
fatiava tudo em volta
com a mesma frieza de que se fizera 
têmpera trabalhada dia a dia
todos os olhos se desviavam à sua passagem
chegavam-lhe ares de poder
que não o era
que o poder não existe no estado isolado

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

da vela

sei o equilíbrio frágil de chama
e embebo-me na auréola da cera iluminada

indago o fervor escorrente em inverso da ruga
e passeio na curvatura da luz e sigo
o bulício do reflexo da parede ao tecto

colho o cintilo espelhado pela íris

sou rasto de corpo tingindo de sombra a mesa
desejo desconter-me
e espraiar-me em corpo derramado

colorido

o azul é branco ou sem cor

o sopro perfeito abarca
o toque que faz a pétala

o corpo rumoreja
o idioma que a ave voa
a asa que baila e acolhe

a palavra é silêncio cúmplice
o aroma tem cio em tom de olhar

a cor sem nome é quente e será berrante

terça-feira, 9 de setembro de 2014

os olhos da velhice são turvos
de coisas vagas, escondem-se
não se lhes veja o embaraço
acontece despontarem
encantadores, límpidos
ao toque em sopro dum olhar

da cor

onde o oceano dorme
desperta o seio
em ti, aguardando
da borboleta colorida o pólen

que a essência embeba
na borboleta a cor
no seio o ser
a vida no ato

o sono do mar marulha bonito
lá escolhi pintar esta ideia

domingo, 7 de setembro de 2014

o curioso da amizade é ser um processo
iniciado algures, porém, inacabado
pelo qual nos revelamos reconhecidos
por termos sido os escolhidos

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

rancor

do teu peito já abalaram os pardais
também os chilreios e os pulos da passarada.

nele pairam outras aves
o negrume grasnante  dos corvos
e o mergulho do falcão para a bicada fatal.

do peito

peitos fazem-se de pulos de ave 
de sopros meninos em bolas de sabão 
de voos de borboletas
e a cor é a das flores

o sol é aquela luz emanante do peito

desesperança

a manhã não brota
não aparece
não se ilumina
será tarde e nem o relógio a ousa anunciar 
será um dia que só tem noite e depois a cinza do nevoeiro
será um dia em que meus olhos se embaciam e descaem até ao chão 
gostaria que quisessem rebolar-se na terra por um prazer menino de se sujarem 
antes, procuram as pedras para se abrigarem do desconhecido que tanto temem
do sol já nem se lembram do nome
e quando o ouvem a palavra é o vazio 
... e as manhãs não vêm

gosto quando soltas os lábios no beijo
e da forma como se engalfinham nos meus
então somos o que sempre fomos
essência

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

De manhã

Eis que sopra a manhã
Sem vento ainda 
Arrivam as memórias 
Uma a uma ou em bando 
Pousam como pássaros na linha
Que o horizonte ondula
As nuvens brincam nela às escondidas
O sol espevita-as de fora
Elas resplandecem de dentro como os pensamentos
Tem sabor a recreio o rumor da manhã

Onde me aguardas de olhos fitos
Sei-o e trago um sorriso para ti
Que embrulhei num toque
Com ternura

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

depois

abraço longo,
até ao esquecimento
um corpo repousa nas curvas sem fim
que o outro oferece — o corpo — linhas
de regaço, de colo em anca e seio e ventre
de carícia, mãos leves de dedos e pés
em pernas enlaçadas,
curso do olhar fixo e calmo
até ao acalento