terça-feira, 30 de dezembro de 2014

abandonada

o silvo ergueu-se da noite
escuro solidão
trespassou o silêncio
e doeu o nada dorido da ausência.

o berro, morto, ganiu um gemido.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

pato bravo, p.e.

demonstram-me os factos
que a incompetência é uma ciência
muito estudada e evoluída,
praticada entre a patetice e a injúria:
a mentira é o método e o instrumento de eleição.

demonstram-me os factos
que nesta ciência, a ignorância
é diretamente proporcional à arrogância,
e, se estivéssemos em  poesia, diríamos que rimavam
e mais não digo para odeio rimar mal.

demonstram-me os factos
que a pior incompetência é fazer mal com propósito,
ainda que os procedimentos exijam elevado nível de capacidade,
há a incompetência para ver, olhar e sentir os outros
fora do centrípeto movimento do umbigo incompetente,

como um buraco negro,
o que é a maior das incompetências.
demonstram-me os factos.
não sei qual o grau de parentesco com a preguiça
que é suposto ser a mãe de tudo o que mexe em prejuízo de outrem.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

sim!
chega-te à maçaneta da porta
roda-a! e entra na vida
entranha-te até a desconheceres
continua até te desconheceres
então volta se muito o quiseres
escolhe um percurso diferente
se te perderes segue em frente
todos os desertos terminam
a caminho de um porto de mar
lá terra e água se tocam
como a chegada e a partida
a vida se engrandece
se atreve ao movimento

apaixono-me todos os dias
discretamente
por todos os olhos que tocam nos meus
se são felizes rejubilo
dilacero-me, se são tristes
tudo momentos
depois largo-os, deixo-os livres
vão como aves que migram

sobre o momento escrever

sobre o momento escrever
sei-lhe a luz
clara, ao fundo, incandescente
por vezes fria.
há um movimento de quem debulha
estende, amontoa e volta à eira
que o sol – o tempo – curará.
o traço é de esquisso naturalmente inacabado
algo em esboço que não sendo de facto
se lê de dentro para fora.
um trajeto enleado no tempo – construção
íntima – o momento.
leitor e escritor tocam-se
o par bailando na melodia do texto.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

história de uma história

a história era fraca
acho que ninguém a entendia como tal

esgueirou-se, a história, para outros lugares
e foi-se encorpando. aos poucos
começaram a adivinhar-se-lhe os contornos
ela própria se desenvolveu em envoltura
em meneio. agora,
passava e movimentava atenções para si
enchia peitos
regressava convicta da sua importância

abrilhantou o jantar
20 pessoas glosaram em torno de si
aplaudiram-na e entrosaram-se nela
era agora uma história interessante
em vias de se tornar forte
quem a escreveu queria uma história
e ela que só queria ser história, conseguira-o.

domingo, 14 de dezembro de 2014

nevoeiro

entendo agora o nevoeiro
nascido nos montes
esse cinzento húmido frio de fraga
nasce da terra em penedos
bolas de fumaça feitas
para se entranharem nos corpos
até aos ossos
como antes se entranharam na terra

as gentes dessas paragens
lêem o tempo pelo vento e pelo sol
contam-no pela lua
sabem tudo dos nevoeiros
as palavras, semeiam-nas esparsas
como as fragas
e no frio do corpo albergam o coração
são como o sorriso, justo e duro
como o olhar endurecido ao tempo

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

estado de desempregado

se tivesse um pouco menos de aperto nas vísceras,
do fundo até ao estômago,
e de frio suado, de dentro do corpo até às mãos.

se ao menos o vómito fosse possível
e saísse do limbo da vergonha de quem se esconde.

seria mais fácil tudo, o momento
e o emprego talvez não me fosse negado

o que eu daria por um pedaço de trabalho digno
e me sentir competente, novamente...

do fundo

do peito fundo
fundo de mar
ao fundo do leito, flui
o que é rio
o olhar
profundo, o sentir
profundo
do sono profundo
ao profundo acordar

procuro
no desassossego
o encoberto dizer
sem repouso
na orla da página
desfolha-se a inquietude
aos olhos debulha-se o trecho
na página, a história
se urde da metáfora

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

amanhecer
aquela gota cristalina
escorrente da noite
ilumina-se
os cintilos são de estrelas
o sol é a metáfora

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

perpetuamento

sentia-se primavera
soalheira
tarde ainda na primeira metade
dia normalmente bom
luziam teus olhos em todos os cantos
pronunciámos "envelhecer juntos"
com a convicção de quem ama
em estado de paixão

o banco plantado no jardim
permanece
a palavra aberta de sonância
incessante

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

acontecia ser
dia do poeta que
nascera um dia
e agora que 
poeta nascia
ninguém soubera
ninguém sabia

insana

deste lugar onde escrevo
a paisagem soa a tiros
estronda e... rebenta
alguém morre
há sempre alguém que morre

neste horizonte conheci a morte
estampava uns olhos
deixou os dedos cravados
em meu braço agarrou-se
e a morte, senhora daquele olhar
chegou e levou-o
conheci a morte

neste cenário morri algo
resta-me o medo da morte
que me alimenta
por ele fujo
sou corajoso e mato

ânsia

sou
dum poema, o verso
impossível

sou
a palavra mal dita
improferível

sou
o apuro na metáfora
indescritível

sou
o devir ainda
infactível

sou
o desejo em ser
inexequível

sou
a ânsia em suspiro
o tracejo em esboço
acontecente inacabado
permanente

sou
o desejo em ser
que nunca será

do céu

no céu
entra-se
penetra-se
sem tocar
entranha-se
e o céu
que é céu
continua
como sempre
mais acima