segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

todos os movimentos acorriam à luz
acender era ação sôfrega 
interruptor o destino
medo emoção em escuro estado

ao vento

o vento chegou 
ourado movimento
erva ramo árvore folha pedra
balanço pungente
memória desperta despertou
o vento chamando
desliza eleva envolta volteou
o que era? passou

a incerteza

a princípio a pedra, mais penedo,
volumosa fria e cinza redonda
fragmenta-se, depois, e seguindo  
calhau aresta cortante ruidosa
continua e, então, é areia suave 
de emperra engrenagem,
se movediça absorve sufoca pesado de pedra,
pode encher-se deserto a perder de vista
pode riscar-se praia: a linha incerta
e cintilante aparta a terra do mar

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

ao escrever sobre nuvens
aprendi que eram tanto e
que eram tão pouco de vapor de água
por lá avistei, longínqua,
a criança que se ignorou

sábado, 19 de dezembro de 2015

dissociação

a pele me possuiu
mais a mim que eu a ela
uma pequena desigualdade ou
uma simples sensação 
quando a ia vestir já não podia 
já era eu sem que fosse minha
a das mãos julguei-a luvas
coisa em branco de tomar o mundo
que uso para me afeiçoar 
um toque de indagar
uma carícia de cada vez 

fluido

a fluidez da forma advinha a distância 
lá onde se esfuma a coisa 
e as coisas todas
o perto vive e pulsa: tinge, soa e move-se
o longe esfuma-se somente 
o personagem inexiste durante 
a performance: invadir o sonho 
ligar a paisagem e alimentar-se 
dela, que o abraça
ao acompanhar da história

(na presença Do Carácter Ambulatório das Paisagens, exposição de pintura de António Melo, a 2015.12.18)

perspetivando

soletrando a perspetiva 
o elemento conjuga-se 
e a palavra - perspetiva - forma-se
dentro de quem a visita
a tela era página do texto exposto
a leveza de pincel 
esculpe-se a forma da penumbra
erigida no sonho e nada ofusca

de ofuscar vem  a impossibilidade de entender
de decifrar a claridade
e o texto não surte

(na presença Do Carácter Ambulatório das Paisagens, exposição de pintura de António Melo, a 2015.12.18)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

poesia

rumaria às palavras todas
esse bando proferido
em teu nome, para te nomear
voá-las-ia até distinguir
o poema nelas contido
talvez quisessem acolher-me
ou simplesmente encarnar-me
a letras desalinhadas
unidas pela cadência do fluir

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

empolgante
é a leitura nunca ser definitiva.
e a escrita, pensada para permanecer, talvez
permaneça na forma e na aparência;
e no conteúdo constata-se uma volatilidade própria:
aquela que a leitura lhe confere.
esta relação cede à história a propriedade de ser
matematicamente
múltipla do texto.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

forma e sinto

o que não sei dizer e sinto
o que não entendo e sinto
redijo e tomo a forma
do poema ali, que sinto

o que ignoro e sinto
o que me confunde e sinto
rasuro e reescrevo a forma
no verso me esclareço, ou minto

e se me entendo, o sinto
verdade ou mentira, nem sinto
confiro textura e forma
dou azo à brandura que sinto

há um indescritível, o sinto
creio pelo indizível, o sinto
tanjo a fluência da forma
se o faço de cor, eu minto

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

da solidez do pensamento único

cilindro
como teu entendimento se comporta
rola em torno de si e esmaga tudo
todas as flores e jardins
todas as gentes, ruas e praças
todo o movimento
depois, só – em modo único –, esse pensamento
geneticamente nascido para cilindrar cores
e indiferente aos jardins e às ruas
decreta-se omnipresente
com direito a toponímia
porque a praça é a face plana do cilindro

domingo, 6 de dezembro de 2015

do que é feita uma selva

a floresta dos pensamentos desatou-se
em selva, um enleado
pensamentos sobrevivem a pensamentos
pensamentos alimentam-se de memórias e nutrem outras
pensamentos engordam sentimentos
e alguns destes amamentam pensamentos
... a selva cresce

envelhecer é um gerar de saudade
a primeira nasce do passado
depois a do imediato, porque se não repete
por último, chega aquela do que se gostaria que viesse

nómada

andar sem fim
ter caminho sem destino
ser presente sem tempo

ser imenso sem limites
de direção e sentido indistintos
sem fito andar sem fim
para onde quer que vá, ir
aonde nada se pode conter
ser brisa ou coisa líquida
abandonar a rotina que não pensa, matuta

habito a amplitude da janela que me toma
diariamente me recolhe os sons da cidade
encastoados nas fachadas de que se fazem os prédios

beijos

sobre esse ato
que é de dádiva ou 
de recebimento, até; 
breve, longo e profundo,
simples toque de boca, de mundo;
acontece na forma doce do acontecer.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

há corvos negros
vi-os
em teus olhos grasnam a aflição
sondam o rumo errando
cortam o ar e não voam
procuram e não entendem
e grasnam
e grasnam
e grasnam
surdos ensurdecedores
grasnam

quis tanto ser-lhes o pouso
recordar-lhes a primavera
ou o morno da cor
e eles grasnando
grasnam e enegrecem
atormentados
não cessam
não param
não pousam

eu que nunca soube nada
ignoro o negrume
que não escureça
desejo
ainda aprendo a ser filho

sábado, 28 de novembro de 2015

à luz da vela

há um conluio entre chama e penumbra
decerto há
a chama bole a penumbra baila
e alongam-se em
movimento longo amarelado
no tom breve estalido da chama
inquieta a penumbra logo
acalma...
a calmaria reluzente da vela

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

o que vem das manhãs
frescas
não lhe sei o nome
sei que é
puro
frio
frio branco do gelo
há uma beleza
nobre
o que vem das manhãs

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

destino é uma ilusão
vê-se o que se imagina
até que tudo pareça, então
predestinado

os melhores poemas esvoaçam-me
sempre
antes que os possa agarrar
os pássaros libertam-se para viver

há uns tantos que cuido e estimo
vivem comigo:
de onde vão, a onde regressam
amenos de linhas de livro

fizeram-se dóceis
de animais domados
adoráveis, pousam-me na mão
e tão frágeis de espontaneidade

mas os que me agitam esvoaçam-me
sempre
deles seguro a linha do voo
e sou catraio e sou feliz

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

incompreensível

o homem que arranhava o céu

como gato arranhando a vidraça
incompreensível
não toca as nuvens
não chega aos pássaros e tudo mais
que o céu ensina
que o alcance dá
que o além abarca
a vidraça impede invisível
invisivelmente incompreensível
presente bloqueia
e pronto!

e um sem significado de coisas acontecia

felicidade

há uma felicidade que não sei contar
não a consigo narrar
quando a vivo não faço mais nada
nem pensar nela
quero

há uma felicidade intrínseca
que vivo por instinto

o resto são tretas

sábado, 7 de novembro de 2015

não tenho poemas para livros

não tenho poemas para livros
de começo visito-os
ou visitamos-nos
perco-me a olhá-los e vê-los ser
(aos poemas)
toco-lhes — tocamos-nos
sinto-os e conto-lhes de mim
histórias desengonçadas
o sabor dos dias — isso, saboreio-os
(aos poemas)
torneamo-nos até obtermos o que queremos 
seja poesia
uma vez por outra redijo destas memórias 
evocações que parecem poemas
pobres banalidades do indescritível
real que o poema é
confirmo!
não tenho poemas para livros

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

até ao final da manhã
as ervas tal como as gigantes das árvores
alimentavam o sonho de voar
e voavam, à sua maneira
que era uma ilusão
mas não era, porque voavam
só alguém que levanta os pés do chão
as julga como não voando
e às liberdades a que se dão as folhas à boleia do vento
uma ilusão
do mesmo modo que para um pássaro voador
um homem não voa
cai ou move-se em cima — ou dentro — de algo que voa
sem meios o homem não voa
nem mesmo aqueles que acreditam que voam em pensamento
não sabem
não sabem a diferença
que há entre pensar voando e voar pensando
no final da manhã
os pássaros voadores tal como os homens
não conhecem a transcendência
a de ensaiar um voo de raízes entranhadas na terra
e mesmo assim voar
e ser tão livre e mais viajado
que os que partem e regressam por artes do movimento
mas que no fundo não o é
e muito menos arte
porque nunca deixaram elevar-se pelas coisas e pelas forças
mantendo da terra a alma que é sua
no final da manhã
no final da tarde
e em todos os nasceres de dia
atente-se que é de ervas que o pássaro faz o ninho
é nas árvores que o constrói
e são elas que o ensinam a voar dando-lhe a segurança de um salto
que quem nunca voou pensa ser no vazio
mas que eles sabem ser um pulo para a vida
ser a força da natureza

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

ler o recorte de uma pétala

ler o recorte de uma pétala
caligrafia simples
perene
expõe a vida que corre ou escorre
pinga ou traga
e resplandece
frágil de tão frágil
e robusta mais robusta
que o franzino gesto
que a toca como a sente sem a ler

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

inconsciente

apagas a luz
sem que percebas a razão
é que estás às escuras
e a luz acesa é uma ilusão
empregas a 3.ª pessoa
e queres falar de ti
em teu estado apagado
procuras a luz sem te ofenderes
e apagas-te

meta chama

chamas (e dizes chamas
e não chamas dizes)
à janela, acesa
e à luz, aberta

porque chama tem a ver com luz
e dizer não vem ao caso
porque chama é o que sentes
chama é o que acende em ti
quando chamam teu nome
e o que dizem é secundário

a palavra é plástica
tem imagem no som
e ambos geram movimento e forma

o poema finge ser arquitetura
dinâmica em obra feita

entendes porque janela é acesa
e porque a luz se abre
e a chama que se fez em ti?

pudesse eu e chamava-te

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

o que por silêncio nunca foi dito
o que pela palavra nunca foi escrito
é sentido não revelado
um esdruxulamente sentido
ou um sofregamente inspirado

sobre o gesto

a poesia já lá estava
chegou o gesto poema
aprimorando

havia um criança debruçada sobre o gesto de
pegar no lápis desenhando flores
à volta do poema, para ficar bonito, dizia
de língua mordida entre beiços, fungando
o nariz ranhoso que adiava limpar
que o empenho no florido era tudo

aqui vou fazer uma nuvem
porque as flores e as histórias gostam de nuvens
com o sol por trás, explicava entregue à criação
que gesto poema emergia do mar de poesia

onde mergulha o pensamento
o de quem gesticula tecendo
o de quem lê pelo gesto também de ler

abraços
enleios longos leves em laços
fortes mais que braços
que braços dão
que braços levam
estendem
soltam
braços que partem do coração

terça-feira, 20 de outubro de 2015

*ismo em solilóquio de um *ista

vou mudar de política
deixarei de comer criancinhas ao pequeno almoço
alimentar-me-ei de reformados e de pensionistas
têm boas carnes, embora mais duras
já sei como os cozinhar: em lume brando
já vi como os conservar: congelo-lhes qualquer coisa
os desempregados dão um bom petisco: temperam
por pouco dinheiro
vou organizar um festim e farei convidados
os que não foram comidos, ainda
regalar-se-ão por usarem talher nesta refeição, ainda
os jovens são os mais ariscos, partem
e não é fácil tirar-lhes o filet
das criancinhas tenho pena, muita pena
há cada vez menos
e eu que gosto tanto delas

anti-nada

acreditar?
já não acredito em nada
e também de nada duvido

nada é o denominador comum
e não me convence
nada

é um despojo
a que só a insensatez atenta
- hoje não me apetece nada
ou
- hoje não me apetece

aqui e sempre
o nada tem a desfaçatez de acentuar
o nada que há em nada

se acredito e duvido
se me apetece e não
isso é comigo
e não digo ninguém que é alguém em lugar de nada

felicidade

gostava de ter um pássaro
gostava de ter um pássaro e dar-to
gostava que tivesses um pássaro
gostava que fosse eu a dar-te o pássaro que tivesses
gostava que o pássaro tomasse algo de ti
e fugisse
voasse longes e pertos como fazem os pássaros
e chilreasse para te tentar
e tentada saísses pela janela
ou voasses da varanda
feliz
e aterrasses aqui como quem regressa de um pulo
depois aninhavas-te assim
confortavas-te assim
aconchegavas-te assim
e querias o ninho que um pássaro teceu de mim

sou
sou transitório
não como quem está em trânsito
nem sequer em transição
sou transitório por definição
sê-lo-ei

definitiva é a morte que em mim lavra
definitivamente

a chama

arde
arde só
arde porque não há luz
arde sem pensares em tochas
nem em reflexos nem em iluminar
arde somente
fluente esse fogo que há em ti
labaredas como palavras
meu coração puro
com a ideia noutros corações
flameja ardendo erguido
ao alto como poema
volátil como crescer

se o pássaro tem medo de voar não tira os pés do chão
e nunca será
aninhar-se-á
o tempo o fará rastejar
habituar-se-á a abrigar-se no chão
será minhoca de tanto não encarar a luz do dia

arde e eleva-te se o ar o quiser
pulsa
há olhares que precisam do teu
a fogueira é um encontro de labaredas
é celebração
arde só
que tão escuro está

domingo, 18 de outubro de 2015

pela voz de peito falava com ele
o peito, ponto de ecos
profundos dos fundos a reverberar
ecos das coisas que um dia foram
física em ciência de magoar

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

cuidar da primavera

agita-se o sol e o céu
os frutos nas árvores e também as folhas
os pássaros no céu e as nuvens atrás
os ventos mudam-se ou mudaram
enfunam as vozes levantam-se
som dos chilreios
porque as primaveras se fazem na mão de quem se ouve
germinam da forma que pensa
poda-as o povo pelo gorjeio de sabedoria imensa

domingo, 11 de outubro de 2015

teus beijos de mulher doce
tão céu, de celestiais
têm corpo, sabem corporais
perfumados, de tão florais

teus beijos de mulher doce
são meus e não me pertencem
adoçam o melhor de mim

teus beijos de mulher doce
quero-os, não para os ter
são para me purificar

nevrose pessoana

i.
tenho um escrever compulsivo
não sei se
será o mesmo que escrever compulsivamente.
aquela foi a forma na condição de disparo
esta o modo como entendi — é um entendimento indistinto
não identifico a génese, só percebo o ulterior,
contudo, este teve uma origem, uma concepção —,
acontece-me este destempero,
tenho erupções que só depois interpreto
e nem sempre entendo;
são ambíguas ou têm ambiguidade?
terei um pensamento que se quer escrito e não pensado.
a consciência do pensamento adultera-o
e essa violência é-lhe insustentável
é-me compulsivo.

ii.
vou esforçar-me por caminhar, parto
rua abaixo dando frente para a água — pode ser
o mar — para que a rua seja rio;
é de calçada o leito prateado.
serei homem de água em meu barco, as roupas
que envergo, o leme é de incertezas que carrego,
a trajetória meu destino. já não caminho
ando, enfuno ao vento que quero de frente
no meu rosto quero sal
que me chegue aos lábios
que me salgue a alma e
que eu aprenda Portugal.

sossego sempre que posso
se me permito sair do imerso
se me abandono ao pensamento vago
se me solto em papel de esvoaçar
sobre tudo

sossego sempre que posso
alcançar-me, é arte que não domino
tenho algos que se arrastam
tenho outros que se adiantam
sobre tudo

sossego à tona da poço
ondeio no espelho profundo
sobretudo
drapeio sempre que posso
até inventar meu voo
desejo atravessar o mundo

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

em suspenso

i.
era assim
ainda hoje não tinha chovido
o gato ronronava preguiçoso tomando a janela
a luz chegava coada pelas nuvens
estas intumescidas pelo sol afiguravam-se poderosas
o livro parado na mesa baixa abria-se em páginas indecisas
a marca lá entalada manchara-se a amarelo de dedos e cumpria a sua função
o ar tinha mofo no aroma e
combinava com o desalinho do sofá
com o queimado surro do cortinado
das paredes em torno das molduras
dos quadros
dos retratos
com o empoeirado de véu sobre o tampo dos móveis
com o aveludado poeirento dos objetos
com o fechado morno-estafado da sala

as páginas não balançavam
permaneciam
posavam como monumento, quem sabe
congelando um momento, uma mensagem
poderiam simbolizar algo
o gato espreguiçou-se
havia harmonia
a personagem estava estática
o olhar era fixo, filtrado a baço engordurado de idade
em óculos grossos e tortos ajustados ao rosto cavado pelo tempo
o pensamento estava no momento, em suspenso
congelado algures

era assim
hoje não tinha chovido
nem ontem, mas ainda podia chover
o bichano seria rei da janela, sempre
ou da sala, se quisesse
ignoraria o poder do volume das nuvens
a proteção da vidraça
o bafio ambiente
as páginas permaneceriam até à corrente de ar
fosse nascida entre a porta e a janela
ou criada pelo movimento

ii.
então
como as páginas
talvez a cortina se agite
um pouco de bafiento saindo da sala e outro ar entrará
o pó desinquietar-se-á do seu estado
ora véu ora aveludado
o sofá manter-se-á em desalinho
o sol continuará enchendo
as nuvens
as janelas
os olhos
os objetos
aquecendo do morno ao esquentar
talvez a personagem esperte
ajeite os óculos
tome o livro
olhe em volta
o gato estacando o ronronar seduzirá para confirmar a janela
sabendo de intuição que não reinará na sala
ainda não choveu mas poderá acontecer

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

aparência

as manhãs poderiam ser-me uma onda
e submergir-me
por vezes sinto-as quase isso...
mas não. são-me metade de uma manta
a outra metade é a tarde
e na outra face está a noite.
o dia é a manta completa
sendo a noite que roça no corpo
o aconchega e conforta
ou estremunha.
o dia envolve sem ser onda.

que horror
esta erosão que me vai por dentro
rói, raspa, desgasta, tritura, fura e
sei lá que mais fará

dá-me a tua mão para pernoitar
conforta meu sono
acalma o ardor que me corrói
desde dentro preciso de uma noite para dormir

diálogo

entre a personagem e a sombra:

– o soslaio do olhar enfraquece quem o usa
– o silêncio pesa quando é mudo
– o nervoso do riso disfarça o embaraço
– o silêncio do choro alimenta-se da mágoa
– o volume da gargalhada afasta o agoiro
– rir é o remédio: interrompe o silêncio e liberta-o do incómodo
– o olhar é a mais silenciosa das armas
– e das fugas...
– e a melhor benesse
– das benesses escolho o sorriso
– o sorriso canta-o o Eugénio
– ...

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

"... o neoliberalismo não tem futuro!
a vida tem a última palavra ..."

todas as vezes que olhares em frente verás o sol nascer.
sempre que olhares o teu smartphone verás todas as aplicações que couberem no pequeno ecrã e
perguntar-te-ás, para que servem, que faria eu se não as tivesse, ou
não perguntarás nada porque perdeste o hábito de perguntar e, pior que tudo, de te interrogares.
e ser-te-á indiferente essa treta do sol-nascente.

ouçam a erva nascer
escutarão a voz do povo
burburinho crescente
agora em tom de lamento
agora tingida de medo
o que ouvem sussurro
é grito à vossa surdez

excênctrico

a um canto
uma parede encontra outra
surrealmente
plantada para a encontrar

uma mesa
uma cadeira e mais outra
uma lâmpada e as sombras, tantas
une-as a coerência da cor, a um canto
vultos e sombras têm-se

uma pessoa
e outra pessoa estão, no canto
com os objetos gesticulam o movimento
as sombras, antes inertes, emaranham pelas paredes
cobrem o teto e rasam o chão
partem do canto

as vozes cruzam-se
também com o timbre das coisas
o som dá volume, singelo canto
cheio acolhe no seio
a vida que de si parte.
um canto, quem diria?

viagem

escreve-se a beira-mar
na linha de água o sossego
das pegadas moldadas grão a grão
soam como palavras
profundas distintas ordenadas
a perder de vista
o texto perfeito

escreve-se a manhã
sustida no canto dos pássaros
emplumam-se as nuvens
enfunam-se voos em todas as direções
laicos a perder de vista
em todos os sentidos
o texto perfeito

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

vão

vão.
o do mar é longo e profundo
enche-se de peixes
e florescem-lhe as algas;
agita-se de todas as nuvens
emprenha-se de todas as aves
perfuma-se de todos os ventos.
aos montes confere as vistas.

vão
as águas em rios e lagos
até aos mares, onde foram nascidas e
infinitamente criadas;
levam toda a prata que a vista alcança
escorrem nelas todas as vidas,
as acalentam como se fosse um embalo

e vão.
que vão é inúmero,
prenhe de tudos e ausências;
a forma em criação
tecida de olhares
ideias e coisas,
obras da imaginação.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

à porta

aguardo à porta!
sinto todas as portas onde se aguarda. sinto (!)
a putice que encerram;
são putas,
de putice em portas que fazem aguardar:
o mesmo que jogar tempo ao inferno,
onde tudo arde, até ao arrependimento, de esperar.
continuo ferido de putice,
isto é, manietado aguardando,
com tanta vida para viver e
aguardo, espero, sossego, arrefeço
ou tento arrefecer e ardo à porta,
à puta da porta que odeio até ao desprezo.
ah! como eu odeio e desprezo a incompetência
de quem se faz esperar,
de quem vive esta forma de se afirmar,
putice que tanto odeio.

a despedida

adeus, é o que fazes paulatinamente
vais-te perdendo nos poucos nadas
despedes-te sem dizeres e sem palavras
demoras atos simples que já foram reflexo
cuidas eternidades e sobeja-te o tempo
alongas o presente
o que sentes é mudo como a tristeza
teu pesar vem do que amas
e desamar não consegues
habituaste-te a ser feliz e não queres partir

pressentes o frio no corpo
ouves ranger
a noite já não tem silêncio
e o silêncio já não tem paz

meus sonhos guardo-os
como rebanhos, apascento-os;
engalfinham-se brincalhões,
bem alimentados a verde de erva e
a doirado de sol banhado em azul céu,
onde as nuvens passeiam em rebanho, também
pastoreio.

as coisas vãs ouço-as, andam;
arrebanham-se os chocalhos
em melodia em movimento,
forma e volume em poema
ímpeto em texto não justificado.
da lã se toma o conforto
como o quisermos urdir.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

sonho firme

manuel, firme, olhando
o papagaio de papel, zelando
o sonho que era seu

manuel tomou-o na mão
estudou o vento, correu
num alancão botou-o ao ar

ao cordel manobra-o atento
agora voa o papagaio
manuel sente o sonhar

domingo, 13 de setembro de 2015

maldade

vivia nos confins da vida
era má
fizera-se má
diziam-na má
à oportunidade de melhorar
negou-a
era má
e não saberia ser boa

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

um país de velhos

um país de velhos é um país medroso
e não alcança;
num país de velhos o certo vale mais
porque há certeza na previsibilidade;
num país de velhos prefere-se a certeza da morte
à imprevisibilidade da vida;
num país de velhos teme-se a a morte
porque é imprevisível a vida além dela;
num país de velhos os jovens são incautos
e tudo o que reluz é passado;
num país de velhos as crianças nascem velhos;
um país de velhos é encolhido e sossegado
o pouco chega "graças a deus";
um país de velhos deixa partir os jovens e não pode lutar;
um país de velhos pelo medo se faz medroso
num país de velhos o futuro apaga-se.

desenho para colorir

pintei sempre dentro das linhas,
tive cuidado, 
nunca passei o risco. 

podias passar só um bocadinho.

a professora não gostava.

podias pintar só do lado de fora
e também não passavas o risco.

e diziam que eu era maluco.

alguém te disse isso?

não.
mas também não pinto do lado de fora.

muito bem.

ocaso

onde o sol se apaga
em forma avermelhada
que o sol alonga
é tua a vista
onde plantas os momentos
todos numa só mirada
enchem-te o sorriso
que ao sol inspira

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

 a melhor lei não precisa de ser escrita. 
porém, é respeitada por todos, ainda antes de ser cumprida. 

outono

encontrei
o melhor poema do mundo
inscrito no ar
desprende-se a folha e rodopiar
sem uma palavra
encheu-me
de tudo, senti-lhe a alma
tomara fosse minha.
já o ouvira
e visto já o tinha
mas nunca o li.
quis-se momento
fez-se poema
rodopiou-me
ali.

amargura

há um recanto
naquele muro que o sol tinge
a negro onde a sombra se revela
a daquele muro
do recanto que tem
que o sol não penetra
não há porta ou janela que o deixe entrar.

há sombras que são estados de alma
tal como os muros e os recantos
que o sol nunca varre.
lá vivem líquenes e musgos
e o encanto que guardam rejubilaria ao roçar do sol
abrissem-se as portas
descerrassem-se as janelas
pudesse entrar um raio de alegria.

burburinho da manhã

a música diz-se nos passos
o movimento dos corpos é uno
o sol fortalece as cores que estoiram o fundo
pulula a manhã acabadinha de acender

a morte

a morte insinua-se
é uma ideia que não deixa muita coisa acontecer
até que aparece arrebatadora
só, mas dissimulada, como é seu feitio

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

rumo

busco a solidão do encontro
colho o só da palavra
e destilo-o no sentimento.
do convívio habito os silêncios.
os sons, por fora, são ruídos impenetráveis
por dentro, são fantasias e afagam.
no silêncio assenta o promontório.
só, um método para arrumar rumos.

onde rebentam as ondas, sonhos e pesadelos

por fim resta a areia de uma praia
o rebentar das ondas que afagam
o rosto que a morte te deu.
o sorriso que fora teu, acabou
envergas vermelho-azul notável
vulto de boneco caído no areal
arrepiaste a surdez cega e muda
a razão porque os muros são construídos
após o dia em que foram demolidos.
a consciência, onde existe, está doída
a praia tomou-te o corpo
velado por ondas mansas
o retrato é o pesar em momento
em que naufragamos.
como teu pai morreremos sempre
até depois do esquecimento
a teu pai o desgosto
a nós a vergonha da passividade
o nosso horror.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Portugal Portugês

e agora, dizei-me, que fica
da nossa terra bendita
que tantos fizeram por bem?

porque a quereis cinza triste
apagada, de euro em riste
que seja o que não é?

maquinais contra o povo meu
reduzis a portugal europeu
o que foi Portugal Português.

sabei que viverá em nós
herdámo-lo de nossos avós
jamais podereis vencer.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

mar

diz-se do mar:
pouso dos olhos.
diz-se, também,
distância infinita
onde contemplamos
ondas em molhos
o mar será
coisa não dita.

sábado, 22 de agosto de 2015

passarinho

é ave irrequieta
a chamamos passarinho
chega pula chilreia
graceja e respondemos carinho
quando parte ficamos sós
e sentimos do passarinho 
enquanto esteve cuidou de nós

não me perguntes 
quantas palavras 
tem meu nome
dir-te-ei uma, só 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

quando em teus braços me tomaste
o rosto de encontro ao peito teu
demorado beijei-to
queríamos sentires sem palavras

ela é ela em desejo de ser a mãe
tu a vontade de ser pai e avó 
ainda a outra avó, numa pessoa só 

verde

tingiu-se de verde
o verde do teu olhar
tão verde, sinto-me
navegar em mar verde olhar

terça-feira, 18 de agosto de 2015

a  terra ser-te-á
grande debaixo dos pés, sempre
nunca a calçarás
ainda que enterres teus pés
que tos aconchegue
a terra ser-te-á infinitude
e a beleza que lhe vires será tua

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

quando as nuvens baixam
roçam na terra como nevoeiro
não fossem elas ovelhas
repastando ao sabor do voo
as nuvens não andariam em rebanho
e os rebanhos não teriam nuvens

ao deitar-me naquela noite
a força que tive não teve lugar
nem para nascer nem para chegar

domingo, 16 de agosto de 2015

em paz

ao deitar-me naquela noite
percebera o dia, pequeno pleno
preenchido de tudos, de todos e de nadas

ao deitar-me naquela noite
sonhei novas palavras
e proferi-as como sonhos absolutos

um dia não haverá poemas para escrever
rescrever-se-ão, como cópias, os conhecidos
porque os números ignoram valores

o pássaro pica no chão
o chão meneia-se para o pássaro

jamais voaria, o chão,
não tivesse da ave o peso do voo

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

os voos são trajetos de aves
aprendidos com as borboletas
ensaiando ser flores saboreando o vento

os homens entregam-se pela flor
algo entre o florir e o voar

sobre luz e cor

de onde vem a luz que se apaga
no final a penumbra habita
no início tudo era luz
e tudo iluminou
e se iluminou

o destino apaga a flor
fecha a porta
esconde a estela
o braseiro acaba cinza
em estado antes da cor

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

as obras do ódio doem a toda a humanidade

escrever

por vezes o escrever é a eternidade
um estado de desejo emergente
da corrente de uma leitura, ou brota
da necessidade infame de narrar para si
soa a expor da entranha

por vezes o escrever é só uma ideia
um manso amadurecer
o escorrer simples da simplicidade

acontece-me o escrever ser
um aguardar inquieto
as tentativas do esboço
as rasuras imperfeitas

por vezes o escrever é condição
encalhado manobrando
desancorando a mensagem
sem trajeto nem destino

o escrever, se é descoberta, é
a arte de iludir pela descoberta

frescura na baixa

o vento da tarde traz
fresco colhido na estreitura
da rua, entra no beco
e não se deixa aprisionar
penetra o entreaberto
a porta a janela batem
atrás de si folia
e fúria num só momento

quebra-se a vidraça
tilinta a sorriso o vento

olhar

como te contarei o bem
de teus olhos sobre mim
de um inacabado de sem fim?

olhar

dos montes o olhar chama à leitura
da árvore à curvatura
do cume à inclinação da colina

dos vales o olhar é amplo
de enorme celestial

domingo, 2 de agosto de 2015

terça-feira, 28 de julho de 2015

o amor é-me a realidade mais bela e pelo sonho não a consigo alcançar.
sempre que sonhei o amor nunca me aproximei da realidade de amar e de sentir-me amado: é surpreendente demais para poder ser antecipado e a imaginação revela-se escassa.
amor desfruta-se; o que também é amar.

do degredo a carta

meu amor,
se eu desaparecer
não pode ser
não poderá ser
e não será

ser português

por vezes ataca-me uma ideia
no português há um mar
bem no centro de si mesmo
para onde confluem todos os rios
todas as veias e artérias
a correnteza pulsa
penso que nela o mar aprendeu a ondear

sexta-feira, 24 de julho de 2015

portugal 2014

de que farei sonhos
se as palavras que uso não gosto
são gastas hediondas

ágora preciso vestir-te
para me preencher

não vejo senão a água dos sonhos
nossos

não quero senão o mistério dos olhos
teus

não vivo senão o vício de ser
amante

e outras essências cristalinas em água
pura

morrer

ir sozinho
onde a solidão mora
é partir
caminhando só

quinta-feira, 23 de julho de 2015

corrente

há linhas que enleio em si mesmas
fossem ideias em redondo de letras
ou de seixos de rio, ora rebolam
ora se aquietam
no fundo sempre se arredondam
a mensagem corre e eles lá dentro
o marulhar fresco da poética
ouve-se, ouço-a

...
o silêncio em torno da rosa existe
e contém a melodia das pétalas

quarta-feira, 22 de julho de 2015

é esdrúxula
esta repartição do tempo
este suceder: vida em folhetins
que merda!, digo eu
que (tanto) odeio telenovelas

terça-feira, 21 de julho de 2015

biografia

nunca me suspeitei, eu mesmo
poeta de escrita vadia
um dizer de sentir
que é o meu sentido
vadio de nascença
domado de educação

anda a mim, andarilhou a calçada 
voarei p´ra ti, voou a ave

o homem sonha e acontece a vida 
o poeta rasura letras ao tecer borboletas

povo

no jardim onde as flores eram impedidas
de florir, aguardava-se que florisse o ar
jogaram-se, os coloridos, nos bancos de si vermelhos
os pássaros desabrocharam das árvores
florir era preciso
e floriu quando o todo quis

quinta-feira, 16 de julho de 2015

viver por algo é a maior dedicação
gastam-se todos os momentos de uma vida inteira
uma boa janela é sempre um lugar de perdição.
sei-o porque é lá que me encontro
...
nesta europa, como no céu,
os anjos recusam despojar-se das asas...

voar é um desígnio dos homens que sonham
sabe-se...

partiu para onde o lugar o faria feliz
amava a ideia de chegada
alimentavam-no as ânsias da partida
confortava-o o retorno como possibilidade
mas vida, vida mesmo era o movimento
e a felicidade descortinava-se além
longe ao alcance da vista

meu deus

gosto de um deus que se distrai
ou que se baralha
que se edita em formatos com sentido de humor
e concede os contrários

gosto de um deus com desfaçatez
desconcertante na ingenuidade
que a sabedoria tem
que a ignorância esconde

efémero

ainda a folha não tocara o chão
o outono já não estava para a aguardar

gostava que a aguardassem
aquela espécie de agrado que faz quem ama

o outono é precoce à chegada e na partida
pertence-lhe um morno doce pós-escaldante

é sereno amarelo-avermelhado de aconchego
antes do frio gelo cinza até ao branco alvo

na folha o mudar da cor
superlativa a perfeição da vida

e completa-se - a folha - pairando
esbanja-se a um voo de borboleta

segunda-feira, 13 de julho de 2015

auto-atrevimento

como todos
tinha para si próprio um desígnio
antes encobrira-o
um receio enorme em o definir
era o pavor de não o alcançar
definhava, engordando o medo

antes navegava
no ecrã uma vida sem sobressaltos
virtualmente debelava as ânsias

agora que o adamastor estava em si mesmo
fustigavam-no tempestades medonhas

no horizonte permanente
o que fora tormenta era boa esperança

sábado, 11 de julho de 2015

tenho tendência a circular no lado de fora
e nem sempre me sinto arejando

fechamento

encerraram-se as portas, ou foram encerradas
a escuridão sempre senhora
instalou-se arqueando o corpo
monumental, franqueando a luz.
as trevas surgiram-lhe debaixo do vestido
irrequietas devoradoras medonhas
insaciáveis, alimentam-se dos medos
que criam e crescem, umas e outros
gordos, frios, negros e sujos.
o que lhes reluz no corpo vem do íntimo
terrores que os tornam visíveis
aparecem no encerramento, de tudo
e das portas, atacam o que fica lá dentro.
também o inferno é um feito de homens.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

maternidade

no fruto do teu ventre descobriste
o mais, muito mais
encontraste a infinitude
sob a forma de amor crescente
o que tu cresceste além de ti
em teu seio a felicidade leva-te ao colo

ainda o movimento

solidariedade é uma onda
como o abandono e tudo o que é humano
como o mar que entendemos
como se fossemos nós mesmos

imaginação

há um sítio
onde a forma tem lugar
para acontecer
sem limites

domingo, 5 de julho de 2015

cor da escrita

o que se escreve das manhãs não chama o vento nem o faz
não gera o movimento entre as folhas e as flores e os pássaros 
dá-lhes significado que é uma espécie de colorido

sexta-feira, 3 de julho de 2015

quarta-feira, 24 de junho de 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

meu nascimento

sábado
4:00 da manhã e mais um pouco
ainda não nasci
crio-me no útero da noite
escrevo para distender o pensamento
exercito-me
mergulhado em recordações amnióticas
que me suspendem e alimentam
respiro
o ar vem-me da noite com umbilical desígnio
reteso-me numa ideia
procuro palavras que se distendam
quero exercitar-me para o nascimento
descreverei uma parábola
mortal encarpado à frente
projetar-me-ei até que a paisagem me receba
então será dia
a noite expulsa-me
o útero contrai-me os movimentos
pare-me um espécie de neurose noturna
e entrega-me dia fora

domingo, 21 de junho de 2015

o movimento

um gesto livre lançado ao ar
volume do corpo nu para o sol
uma folha solta livre vogar
lento branco enfunar de lençol

ainda um sonho que sonha pairar
ou uma praia drapeia ao vento
ou uma seara que sabe ser mar
eis as maravilhas no movimento

todas as vozes tingem a paisagem
estira-se a calçada envolta nos passos
e fica o colorido marcado no tempo

eu acredito em toda a passagem
em volume e cor, em linhas e laços 
e na força lenta do movimento 

contratempo

o tempo que me visitou
por mim passou gerundiando
em contratempo apressei-me
ele correu eu contra investi
quando tudo acalmou
encontrei-me assisando
o modo que vivi
como nem conta dei
do que por mim passou
e por onde eu passei

segunda-feira, 15 de junho de 2015

diário

a manhã, o despertar
todas as memórias são sonho
e todos os sonhos são um lugar próximo
perto de mais para ser autêntico
porém, distante, ao ser fantasiado
a luz ainda não é
os atos ainda não são
o dia ousa irromper

e urdir-se na teia do que não foi
acomodará os factos
sem ânsias, o que não era, será
e quando o for, estará planeado
ignorar-se-á o acontecer
excluir-se-á o erro - partícula
omnipresente do saber -
o modo humano de aprender

chegarei ao final do dia
aguardarei o início da manhã
acolher-me-ei no colo da noite
em amor tenro e largo
purificar-me-ei na madrugada
quando as orações despontam
quando os poemas brotam
antes do esquecimento

haverá, então, algo de mim que me relatarei

catastrofia

mãe
a vida que me deste
usei-a para morrer

quinta-feira, 11 de junho de 2015

sei o pouco que se morre de cada vez 
sei que aos poucos se morre muito
até à totalidade
até à eternidade

quarta-feira, 10 de junho de 2015

súplica

ai,
quem me dera ser
alguém que não sou
e que temo nunca ser

ai,
senhora dai-me a graça
de não me aborrecer
com a desgraça de não ser

ai,
bendita por amor
cumprirei a promessa
aguardarei teu favor

sexta-feira, 5 de junho de 2015

meu amor
não vejo senão a água dos nossos sonhos
corrente de alegria de rio
desmandada  sobre a terra
e nela cava o leito de seu ser

meu amor
não quero senão o mistério dos olhos
os teus que se quiseram meus
neles me alongo para ser maior
o bastante para abarcar o teu olhar

meu amor
não vivo senão o vício de ser amante
esse borbulhar de promessas
fios com que urdimos nosso olhar
a luz maior que nem o sol a alcança

quinta-feira, 4 de junho de 2015

um toque de baton

nada mais
um brilhozinho rubor
a confiança em ser

mãe

mãe
diz-me as horas do dia
diz-me que a noite é dos anjos
faz-me crer que os demónios poderão ser anjos
diz-me que sou o teu filho encantado
faz-me acreditar que as minhas asneiras não são importantes
sorri-me teu beijo de até-amanhã
abraça-me em laço feliz
deixa comigo teu aroma doce a leite e a lavado
amanhã despertarei à luz do teu olhar
vestir-me-ás entre cócegas e abraços
pentear-me-ás de pente molhado
elogiar-me-ás o cabelo forte e rebelde
e far-me-ás orgulhoso de mim mesmo
sentirei segurança no teu olhar
e direi baixinho para mim mesmo
mãe

terça-feira, 2 de junho de 2015

quem morre lutando nunca é derrotado
pode até perder-se todas as batalhas
ser derrotado é render-se e submeter-se

banho do tempo

assassinato é
hipérbole de facto
no subjetivo interpessoal
assassino é um termo da relação
vítima é outro
na vasilha do tempo
todos matam e todos morrem

segunda-feira, 1 de junho de 2015

eucêntrico

embebeda-me este andar por dentro
perscrutando o sentir daqueles
que por mim passam escancarados

ignorando o que mostram pelos olhos
que são montras que escondem da vista de outrem

ignorando que seus andrajos propalam como arautos
mistérios que ainda desconhecem

ignorando que no caminho espalham confissões
que seus passos se derreiam das tristezas e pulam alegria

embebeda-me a história que revelam
e como o fazem: momentâneo sôfrego
há tanto a contar num lapso de tempo

embebeda-me este cruzar de silhuetas que tudo diz
e nada ouve. uma surdez em estado de alma
toda garganta e nada ouvidos

sente-se o que está dentro bem muralhado
de fora protegidos

cor

espero nascer do branco página
para ser um ponto no vazio
depois outro e mais outro
e crescer linha que se eleva
curva e voa
como são as borboletas
na metamorfose coram

ao Eugénio de Andrade

Eugénio
matam-me todas as manhãs
se correm para a tarefa
sem gente

chegas
eu levanto os olhos
há um sorriso para ler
e tantos para escrever

insignificância

sou um homem pequenino
minúsculo

ao pisar-me, uma formiga magoou-me
imenso

nem tanto pelo peso
mas quis passar-me por cima

sábado, 30 de maio de 2015

paz

no canto do teu regaço
o aconchego é seio

teu corpo molda a carícia
o meu agracia

tudo é um pulsar solto
ritmo do peito

tempo é amor

sexta-feira, 29 de maio de 2015

flor do tempo

tomou forma
diminuendo
aroma a preguiça
deslembro-me de tudo
vadio à superfície do vento
conforta-me o sol
repouso as pálpebras
o horizonte é lindo

terça-feira, 26 de maio de 2015

no meu rio o leito paira além do mar
no meu rio espraiar é o destino
no meu rio ser é vocação
no meu rio navegar é ir além da nave
no meu rio viajar é penetrar e deixar-se entranhar pela jornada
em mim rio e navegador são a unidade

quarta-feira, 20 de maio de 2015

escrever

nunca fui, além
desentendia
a luz teimava iluminar
a palavra, eu não via
desvia
enrolada, a linha
era a palavra bordada
esboçando o voo

terça-feira, 19 de maio de 2015

nascimento

todos os sítios
a terra havia
a vida era
um grão a semente
a água o despertou
o pó o havia acolhido
agora sonhava crescer
grande
abria os olhos
um destino imenso
era
o berço
onde firmava os pés e o corpo
largou raízes
para ser
infinito

segunda-feira, 18 de maio de 2015

domingo, 17 de maio de 2015

beira d'água

escrever de água
esse líquido precioso corre-me nas veias
leva-me às margens, às beiras
o limite além do qual o corpo paira

nos beirais os pássaros recitam
e as andorinhas moldam o lar
ante o gotejar

os cisnes bailam nos lagos
e poderiam ser poetas

dos rios afloram os lírios
e colorir-se-ão as beiras

no mar as sereias ondeiam
olhos encantados à beira-mar

escrever de água
não poder aquietar-se
na calma do charco o desejo
é pedra como beijo do despertar

segunda-feira, 11 de maio de 2015

olhar cego

procuro o pôr-do-sol
e não sei

procuro-o no pote d'oiro
e não sei

procuro-o no fim do mundo
e não sei

procuro-o atrás do monte
e não sei

procuro-o na copa das árvores
e não sei

procuro-o ao fundo no mar
e não sei

procuro-o no areal deserto
e não sei

procuro-o no horizonte da cidade
e não sei

procuro-o no recorte da multidão
e não sei

procuro-o atrás das nuvens
e não sei

procuro-o
e não sei

tenho-o no olhar
e não sei

procuro-o

timbres da primavera

a voz de pássaro
fresco azul amanhecer
morno tom entardecer

encanto
a melodia do voo vivo

colorido
a cor bela do movimento

as árvores são o encontro
o céu é fundo
os pássaros permanecem
suspensos nelas

lá se aninham
em ninhos os pássaros são
passarinhos

domingo, 10 de maio de 2015

sonus silentium

a voz do silêncio
articula a palavra
entoa-a
pronuncia-lhe a forma
do corpo, desnuda-a
e a palavra dá-se
ao volume da ideia
a sonância da palavra

sonus silentium

o silêncio
se nos ensoa o nome
estremece-nos

cega ignorância

tanto quanto sei
nada falta quando se desconhece
a inexistência resulta da ignorância
sempre ou quase sempre
deste modo
a inexistência de caminhos é uma ignorância
cega, quase sempre
manifesta-se: não deixa ver

sexta-feira, 8 de maio de 2015

descoberta

a manhã era de sol. o dia, bonito; é assim que o recordo e não me lembro de o ter visto. teria, eu, por volta de 5 anos de idade, estava no quarto de meus pais, na cama aninhado no que restava do aconchego, e minha mãe vestia-se, mirando-se no espelho do psiché. envergava um vestido verde entre o azeitona e o relva - estou a vê-lo - de cabelo preso em puxo e vestia um olhar lindo e estranho que eu não compreendia. alisava o vestido no corpo de forma particular na zona das ancas e da barriga. perguntei um "-- o que foi mãe?" e obtive um "-- nada" com sorriso combinados, em resposta; ficou-me o enigma com a minha memória: tem no centro um olhar e uma expressão de rosto, de corpo, e um ar que guardei sem entender. creio que por isso mesmo a guardei.

entretanto os anos correram às dezenas, duas e meia pelo menos. era tarde, após o almoço de um sábado, no caminho para o bica com a minha família e cumprirmos o ritual de encontro com os amigos no café, a descida do elevador no meu prédio foi interrompida pela entrada de uma vizinha no 6.º andar (podia ser o 7.º) que chegou trajando o mesmo olhar que eu ainda guardava sem conhecer. senti-o e olhei-a com a mesma meninice da primeira vez; ela não deu conta e eu não perguntei nada, mas decifrara-o, apanhei-lhe o significado, o dela e o da minha mãe, e repousei um silencioso "-- estás grávida", ainda antes de todos abandonarmos a porta elevador à sorte da mola que a encerrou na cadência que todos sabíamos.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

onde meus olhos descansam
o horizonte ondulado com leveza
e mais além a infinitude sem linha de recorte

teu olhar
que tanto amo
não entendo porque se demora
em mim - o que vê? - me pergunto

segunda-feira, 4 de maio de 2015

as linhas do meu caderno

no meu caderno, as linhas
risco-as à mão
pouco direitas, rasuro-as
redondos e vértices, emendo-as
tracejos do coração.
e erguem-se, assim as manhãs
e luzem, o tom de sonho
e cruzam-se, são olhares
e escorrem, nem sei de quê.
ingénuas, as linhas
no meu caderno, eu vivo
amargo e adoço
linha a linha, me teço
volta e revolta, me faço.

domingo, 3 de maio de 2015

mãe

doce é a mãe
e o beijo dela
a pele do rosto seu
e o toque no meu
também o colo
regalo do aconchego
e o embalo onde adormeço
guardo-o, eu

doce é mãe
a ternura que me surge
deu-ma ela

quinta-feira, 30 de abril de 2015

o surdo sonha, fala 
e ouve-se, e fala mais alto
e ouve-se mais

invade-o o êxtase, sublime
ouve-se e tanto quer dizer

e o surdo ouve-se
tagarela e é feliz

da pérola

como se agradece a pérola deixada
pelo beijo da entrega
que é dádiva, a maior?

como se cuida a pérola polida
redondo cintilante que toma 
dos olhos o olhar?

e o brilho
que a enche brota nascente
como se agradece a pérola?

quarta-feira, 29 de abril de 2015

sexta-feira, 24 de abril de 2015

entardeço
acosto adormeço
preparo o anoitecer
alcanço
a estrela do sonho
passeio-a e leva-me
ao alvorecer

geometria da noite

a noite
como se desenha a noite?
com um traço, assim
despojado reto
entra nela, por fim
a curva em traçado
de esfera, envolve
isolando
o movimento, só

sexta-feira, 17 de abril de 2015

divagando

i.
a nascente dos dias jorrava-os longos,
infinita,
espremidamente longos

acontecia serem puxados a pulso
por todos os pulsos do mundo

o que os fazia mais longos e desejados

e tomou esta forma, o tempo:
longo e desejado

ii.
segue o patamar da rua empoeirada
abeira-te dos parapeitos
das janelas joga-se a luz de um para outro lado

se o fogo respeita a noite, aquecendo-a
ela gosta
e irmanam-se  pela lareira

iii
o que afasta as pessoas
não é a distância mas a falta dela
a sobreposição e o empurro:
o antes de tudo, o antes de nada, o antes de mais
e o pior, o antes de todos, que a ganância tem

sexta-feira, 10 de abril de 2015

o texto sempre foi mais amplo e mais rico
que o autor e o seu pensamento
o texto enriquece-se nas leitura
por elas se alarga
são elas quem o dizem

ócio em fim de tarde

sabes
a bonomia da tarde
quer-nos a ternura em final de dia
o nome entardecer

olha
o morno ponto
o sol redondo avermelhado
deitado vai-se esconder

sente
o corpo estirado
em banco aberto, acordado sono lento
momento antes de anoitecer

e futuresce, a palavra sedutora,
ela única o poema

a fantasia das palavras

todas as palavras têm sexo
depois do género.
todas as palavras fornicam
ininterruptamente
não suspendem a depravação
de serem o que são. enleiam-se
sem se acotovelarem
desmandam-se no verso
e gritam esparramadamente.
a fúria contínua entranha-se
tomando as palavras que se penetram
viciadas. oh deus!
que derrame, que desalinho
que desordem
se funde fecunda e gera.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

do verso

o verso é o todo uno
cume do viandar
sonho em frase despojada

e flutua, o verso

do poema nada sei

dos versos

recorta, pinta e cola
recola, porta e cinta
recinta, pola e corta
morde a língua, fala só
míngua a lorde, ró de si
empenho e travessura
ou travenho e empessura
o menino vai enchendo o caderno
digo, livro

do poema nada sei

dos versos

um verso in-
verso outro verso
era uma vez o poeta
acontecendo

do poema nada sei

quinta-feira, 2 de abril de 2015

amador

i
amo a dor de me doer
não amo, é o meu amor

ii
saberás
que amar não se sabe
é sabor
indescritível

sobre o vento que passa
sabe-se, já passou por cá
e, sobre tudo voltará,
passando, sempre

quarta-feira, 1 de abril de 2015

viajante

viajo
quando meu comboio descarrilar
terei estrada para correr
e quando esta acabar
serei do mundo, sem chão, para me perder

se deus resultar da preguiça
de entender ou de explicar
o acontecer

a preguiça - a mãe
dos males - pela maternidade
fará deus nascer

e sendo companheira
do ócio pariu o diabo, irmão
de deus e poeta, bom de ver

para onde dirigir o olhar
se a paisagem é ampla
longa e larga, profunda e alta
como a cegueira?

poderá a terra ser árvore?
alçar-se ao céu
pó-de-ser

poderá a árvore ser ave?
devotar-se ao ar, pairar
se erguer

poderá a ave ser chuva?
destinar-se ao chão
chover

poderá a chuva ser terra?
início e fim
viver

ditado

escrevi no pôr-do-sol que me caía no caderno. era meu
sem o ser e senti que poderia escrevê-lo, ou escrever-lhe,
em cima, para nele ficar gravado e ser dele
também.

iludi-me, pensando que seria autor da escrita,
quando era só o motor, a máquina do movimento. a mensagem vinha dele
e apanhando-a eu, tinha de a pôr, não sei a quê,
e fi-lo no caderno sem que pudesse dizer as ondas da areia,
as sombras do areal que o pôr-do-sol me descrevia.

não pude fazer o ditado
e foi neste estado de aluno menino que me mantive,
por isso dei-lhe toda a atenção que tinha,
tudo o que me restava.

terça-feira, 31 de março de 2015

sentidos em poema

i.
(à partida)
sonhei
com a água que embalava o bote
feito uma concha aberta ao céu
acolhia o pescador que ruminava o poema
que se lhe escrevia nas rugas

ii.
(ouvindo)
sonhei
marulho de água embalando o bote
chocalha na concha aberta ao céu
o pescador trauteava gaivota
restolhava o poema que se gravava nas rugas

iii.
(cheirando)
sonhei
cheiro fresco a água ampla de embalo de bote
aroma marinho de concha aberta ao céu
essência de suor e peixe em perfume
hálito a poema que se desprende das rugas

iv.
(tateando)
sonhei
conforto de líquido em útero
macio sulcado de concha aberta ao céu
aspereza do olhar estendido de pescador
acariciava o poema crestado nas rugas

v.
(vizualizando)
sonhei
mar e céu de azul fundo
conchas em barcos voltados ao céu
pontilhava o homem, pescador de versos
macerava em poema escrevendo-o a rugas

vi.
(saboreando)
sonhei
salgado nos lábios e depois no corpo
frescura sabor da concha aberta ao céu
degustei o poema tempero de pescador
que repousava nas rugas

um homem final é
um retábulo, na aparência
de recortes e de epitáfios

rezo e escrevo
penitencio-me
divino-me para ser
homem comum

nar-siso

entristece a mágoa no olhar
devora
o zé da chuva nunca feria
a poça
agitava-se a água concêntrica
gota-a-gota
amargura a desgastar
vagas onde o zé via
na água que mais amava

com a montanha

cedi-lhe as rugas
e ganhei
enriqueceu-se de vales
profundos
ficamos uno, ignorando-nos
companheiros em silêncio
éramos outra coisa
nós
e nossas as marcas da vida

domingo, 29 de março de 2015

criador

poeta sabe renascer. e fá-lo
pelo poema
desvive sugado para o escrever
e ressurge na alegria
ao sê-lo escrito

poeta é o criador de deus
só um poeta criaria algo maior
que ele mesmo e far-se-ia criado
pela sua criação. só um poeta sabe
renascer assim
morre e se pare sonhando

sexta-feira, 27 de março de 2015

não mais

não é mais bonito
o sonho que me pare
dia-a-dia
temo ter entrado em paridura
diária, uma rotina qualquer
nascer em sofrimento
como  modo de estar
ou, se calhar, de ser
sonâmbulo
não é mais bonito

talho a tanger poeta
não é mais. bonito
é outra coisa
e poeta também

quinta-feira, 26 de março de 2015

oblíqua perspetiva

se o inferno fosse ali ao voltar da esquina:

o inferno estaria por perto;
o céu seria a praceta mais além;
à esquina, a ostentação conviveria com a miséria;
no mesmo ângulo, o poder passear-se-ia entre a submissão;
estaria próxima a justificação da maldade;
dobrando a esquina, a destruição pareceria progresso;
saberíamos como o dinheiro pareceria uma bênção;
àquela esquina o sonho mataria outros sonhos e assassinaria a utopia,
esta vive mais além, numa praceta qualquer, onde as pessoas circulam e estão.

sobre estreituras: a do poema

sou tentado a escrever, a minha forma de dizer – um dizer trabalhado
em busca do espontâneo (meu paradoxo) –, que
a escrita de um poema é um processo de acanhamento,
uma contração que o transforma numa estreitura.

o poema mais belo é uma ideia, singelo;
nele rejubilam as palavras, fossem crianças num recreio.
pela escrita, primeiro organizam-se as percepções e
dispõem-se as crianças em tamanho e sexo,
idade ou brincadeiras preferidas e obter-se-á consistência na descrição;
se se conjugarem os tons das vozes e o movimento das crianças
ganhar-se-á a sonância e o ritmo, a melodia;
mas a magia do recreio, a folia da espontaneidade de estar,
chega diminuída
e só quem brincou num recreio estenderá a descrição.
e só quem viveu aquela ideia entenderá o poema,
pois a palavra trabalhada submete o espontâneo e modela a criação,
circunscreve os significados do significante e
compromete a paleta das acepções
que afluíram ao poeta, provindo desta última a essência da poesia.

a escrita de um poema é um exercício de aproximação
de realidades, que a realidade são encontros e reencontros
de realidades que poderíamos chamar ideias,
e a escrita é um instrumento canhestro para as expressar,
contudo, necessário, pela distância – tempo e espaço – entre leitor e autor.
a poética é o estilo – personalizado – de transcrição de ideias
em poema, é uma estreitura por definição, para que se entre na poesia
onde tudo é simples, fértil e amplo como o olhar.

porém, há uma beleza incalculável na estreitura,
por exemplo, a de uma rua da baixa. quanto mais se entra nela
mais profunda e elevada, mais larga a poesia.

quarta-feira, 25 de março de 2015

13 aforismos

  1. o horizonte não tem linha: linha é uma coisa
  2. céu e terra são o todo mas não o tudo
  3. a vida é-o com a morte e esta também se vive
  4. a mentira desfaz-se azeda e se apura a verdade
  5. pode viver-se no verso e no inverso desconheço
  6. as memórias são tesouros: restauram-se e revivem-se
  7. fantasia é a cumplicidade entre a imaginação e o desejo
  8. nunca toquei a liberdade mas noto que me cerceia
  9. a liberdade não é a pomba é só o ar do voo dela
  10. as coisas grandes não se guardam, envolvem
  11. as coisas pequenas encerram, parecendo que se possuem
  12. todos os dias se iniciam a meio da noite: iluminam-se pela manhã
    entardecem pela tarde até à noite, quando e onde se sucedem
  13. o nascer do sol é um mito, a realidade é o reencontro

nascimento do poema

a manhã começa
o poema feito esboça-se
os símbolos despem os significados
a metáfora desagrega-se
o verso balbucia

é a tarde da manhã que começou
as palavras esfumam-se ao tempo
a rasura desvanece-se no sentido
a folha é branca e singela
o pensamento paira nela

é a noite da tarde que foi da manhã que iniciou
poema é a ideia
solta, livre em crescente
vagido no silêncio dos silêncios
nasceu

terça-feira, 24 de março de 2015

momento

todas as horas se apagam
fossem luzes, que o não são.

meu desejo cumpre-se.
ouço-me no silêncio
vejo-me na escuridão
no tempo sem trastos encontro-me.

nem passado nem futuro.

eu, comigo mesmo, agora
o momento.

terça-feira, 10 de março de 2015

... um homem em lema maternal de ser pai.

surreal

agora que escrevo sem caneta
pingam-me as letras dos dedos
perfilam-se em palavras
estas em versos
estes em estrofes
e estas fazem a companhia
sendo as estrofes pelotões
os versos linhas de soldados
e as letras agrupadas em palavras
os grupos de homens

a profundidade é infinita
entre quem arrisca tudo
viver morrer escrever

por mais que deteste a associação
da guerra à poesia

oramento

ai de mim
que nunca soube
andar de mar
em barco inquieto
que é a vida:
afogamo-nos em nós mesmos
vamos ao fundo
profundo de nós
abandonamos a tona
onde a vida vegeta
e os vegetais ostentam
a verdura em todas as cores
além do verde
há os azuis
que fazem o mar e o céu
onde se afundam
em azuis frios de morte
os barcos que navegamos
como vidas que perdemos
antes mesmo de nascermos
ingénuos impreparados
mas puros
em purificação!
deus das vidas difíceis
ai de mim

sexta-feira, 6 de março de 2015

os dias, pare-os a noite
o que faz dela única como as mães
os dias, sendo irmãos,
são diferentes entre o doce e o amargo

quinta-feira, 5 de março de 2015

ao fim da tarde com Pessoa

o que escrevo vem da alma
de meu mestre que sempre foi
discípulo de si mesmo e soube,
melhor que ninguém, o aprender.

escreve-me da inspiração, rogo-lhe.
eu deixarei a mão morta,
livre, para que a possas movimentar
e dar-lhe vida, que tanta tens.

pela morte se liberta
e pela entrega se vive
e nasce a vida
inspira-me...

confusão

desertam de mim as palavras.
eu fico. vazio é uma sensação muito minha
que nem as palavras conhecem
nem as proferidas em oco sentido

este ser casca ensurdece-me
sou todo ecos.
o verbo reverbera não conjugado
eu nada entendo

terça-feira, 3 de março de 2015

poetas

já viram um poeta escrever?
fascinante!
todo ele é voz
é movimento
o corpo baila em torno da mão
num eixo que ela mesma traça
é o poema, vivo
as palavras que ficam
são a penumbra imagem do momento
e se recria se outro poeta as lê.

já viram um poeta ler?
fascinante!
todo ele é voz
é movimento
o corpo baila em torno dos olhos
num eixo que eles mesmos traçam
é o poema, vivo

as palavras, se abandonadas
são a penumbra imagem dos momentos
quando um poeta escreveu
e outro leu

sopro de luz
rasante
em nascente poente
sem meios dias

os corpos resplandecem
na contra-luz

do silêncio

silêncio
a sonância que percebemos
de nós mesmos

sábado, 28 de fevereiro de 2015

iv atos da criação

i
no início
na indistinção o homem contemplou o mundo
e os seus elementos que deificou à sua imagem.
assim, criou deuses que amou e temeu
e por isso os adorou
e a eles se submeteu
e por eles mandou.

neste estado
o homem conheceu-se,
refez-se com o mundo e recriou deus
que fez o homem à sua imagem e semelhança.
depois de criar o universo, o mundo
e todas as coisas, deus criou a vida.

durante a criação
deus andou acompanhado do silêncio,
tão antigo como o próprio homem
que o descobriu sem que o tivesse inventado,
nesse tempo.

ii
no início
deus perguntou:
— de que água farei os rios?

o silêncio respondeu:
— de água que corra num só sentido

e deus fez.

depois, perguntou deus:
— que forma darei a uma onda?

o silêncio propôs:
— a onda tomará a forma do volume da inquietude

e deus fez.

continuando, deus teve dúvidas:
— que cantará um pássaro no voo?

o silêncio enunciou:
— o que os ouvidos não ouvirão, os olhos não verão mas estará na paisagem

e deus fez.

e logo voltou a perguntar:
— e os olhos, o que os levará ao olhar?

o silêncio disse o que sabia:
— o encanto do ser

e deus fez.

ainda questionou, deus:
— que sentido dar às perguntas inúteis?

o silêncio soltou:
— semear inutilidades é a maior de todas as ações

e deus concordou.

então confessou, deus:
— não sei porque teimo em questionar-me...

o silêncio sorriu
— é o teu modo de estares comigo

iii
desde o início
a torre da igreja,  senhora de tudo,
ensina a lenda das coisas pequenas;
badala-a ao tempo
derrama-a nas horas,
recria-se a história contida no momento.

iv
no fim
permanece o silêncio
o recomeço, a criação...
o início.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

espontâneo

os melhores versos nasceram-me
ou brotaram sinceros
assaltaram-me, talvez
e jorraram e partiram.
as memórias que deixaram
são irrequietas de mais
não os consigo escrever.

um louco me ensinou
"o bonito das coisas sai à primeira"

de passagem

a voz moldava o gesto
meneando indiferença insinuante, para mim

o olhar rolou lento na anca inquieta
o verbo nem me era dirigido

há um estado de sedução distraída
outro de tentação involuntária

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

rua escura

desço, diariamente, as profundezas da rua
onde coabitam memórias e pensamentos;
há uma praça onde convivemos normalmente, em algazarra.
no retorno a solidão se desvanece;
rua acima, tudo vai clareando...

há um certo ritual de via-sacra
neste trajeto por dentro de mim, penso.
a intimidade toma forma no entendimento
de si próprio... tudo acontece depois
independente da vontade.

criação

o pôr do sol
a cortina escorre
encerra o acto, o dia
a noite surge criadora

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ainda não havia nascido
e a oração inundava-me

o mais interior de mim mesmo
chegava-me de dentro
profundo

intenso
para que o dissesse

escrevi-o
tentando o tom de deus

sem destino

eu queria
acima de tudo
ir até onde pudesse
ainda que ali não fosse
e aqui não viesse

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

liberdade

sonho,
sonho com o vento
um dia planarei nele
quando me fizer leve
e digno de pairar
como folha de árvore
amadurece em outono
antes de soltar-se
livre para o vento

será a poesia uma abstração
um extremo pelo qual
as intimidades se tornam cúmplices?

sei da poesia ter uma concretude
igual à que a intimidade tem
sendo esta o útero onde se cria, a poesia

ao abalar decidiu zangar-se
o que fez com a paisagem, pois
agora partia e pouco doía

em meu corpo há veias em vez de rios
por meu fervor galgaria todas as margens

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

sinto um desejo indómito
de anotar tudo, atento ao pormenor.
partem dele a linhas mestras da vida,
sinto-o. e são tantos os que me berram à perceção...

fatalmente, a mestria gera-se no detalhe,
esse horror da minúcia que nos toma
e escraviza, desta forma nos seduz:

concentrar num ponto e dele fluirá tudo,
a vida; a doçura de um carinho
é mais e maior ao absorvermos cada ponto
do trajeto dos dedos pelo rosto.

porém, o rosto que é um todo
que olha e sorri, se ameiga na mão
agradecendo o toque de cada dedo.

viveria eternamente neste pormenor do momento.

fiz-me, sonhando-me, para alguém

apetece-me
a suave beleza de um luar
a envolvência leve de uma brisa
os sons do silêncio da noite
a luz de um sorriso... e lá morar

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

pudesse eu ser feliz
mo autorizasse, eu
erguer-se-me-iam os lábios
aos cantos, de dentro para fora
o espelho ver-me-ia palhaço
ou máscara sem vocação
aprendi a entristecer-me
a desconsolar-me
sempre encontro algo que me falta
evito o pânico da felicidade

larga solta deixa escorrer
o pensamento, fá-lo vadiar
se quer partir e sempre volta
convence-o a ir sem regressar
empurra-o devoto
acompanha-o na vertigem
gera o renascimento  

sobre o mar

incendeia-se
onde o sol de apaga
arde
ondas labaredas
nas alturas
profundo

manhã

o mar abunda
circunda rebola volteia
entoa o movimento num ronco profundo

as gaivotas denunciam as traineiras inquietas
o acabar da faina

o céu
um punhado de azul
um fio de vento

a enfiadura de nuvens
ares de mar sobre nossas cabeças

o sol rasante
eleva a forma e provoca o visível

sussuro

a voz
melodia do embalo
sonância
anterior ao canto
encanto
sopro leve da palavra
síntese suave
sentido da palavra antes de o ser
soube-o
ainda teus lábios modelavam
o que teus olhos anunciaram 

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

amor
inunda-me, a palavra
banha-me, o sentimento
navego: corpo e peito
e pairo: voo e nado

esvazio de mim
a leitura plural que de mim mesmo nasço
é esse o ato de parir

espontâneo

desenho garatujo rabisco
linhas de desinteresse
soam a intimidade
exposta na margem
rascunho...  definitivo

essência

teu seio
aconchego em ternura
meu rosto
os olhos caem-me no umbigo
o centro da curvatura, sinuosa
acorda o cálice, transborda
aroma, primeiro
textura sabor doce quente
abraço coxa e virilha
gesticula, a língua, toda a paixão
poema força movimento
a palavra simples e virtuosa
o gemido

sábado, 31 de janeiro de 2015

à janela

vejo minha imagem projetada
na vidraça reconheço em mim
as mãos de meu avô em forma
algo em gesto mais forte que o ADN
senti uma força, a herança de meu nome,
tudo sobre a forma de fantasma

intemporal

há um certo egocentrismo no entendimento
do tempo que chega ou que passa
pior ainda no tempo que se agarra "— o meu tempo..."
de facto não se pára nem se muda no tempo.

como gosto das férias sem relógio, dos dias não contados...
é incontável este gosto, este prazer intemporal de ser no tempo

rendido

conforta-me
a luz que vem de ti
empalidece-me
quedo vulto fraco
nem a sombra teço
aninho-me de alma
em ti me aconchego
e adormeço

sábado, 24 de janeiro de 2015

voos, há-os diversos
em forma, consistência e sentido
eu gosto da cor que soltam
e do fresco odor que deixam

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

até onde a consciência permite o perdão de deus
é costume a benevolência sucumbir à piedade
nunca a culpa resolveu um só problema
culpado carrega o cheiro da vingança
a este fenómeno chamamos expiação e penitência

a luz do dia não chega para iluminar a noite
o luar resulta da projeção de luz refletida
a realidade é física e humana: formas diversas de projetar e refletir

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

da água que pára
sei o charco
recordo o lago
conheço a que pinga do rosto
estaca no chão
se dissolve na vida donde brotou

podendo as lágrimas ser de mar
poderia o mar ser de lágrimas

morrer
não é palavra
nunca foi
é ideia
encorpada fria longa
cinza triste
aparece persiste

inércia

entre
o fora e o dentro
algures
o lumiar ou o permeio
em ponto linha volteio

de
fora para dentro
movimento
o sentido desejado
o indefinido receio 

sábado, 17 de janeiro de 2015

um rosto feito de empedernido
cobria-o a pele do sorriso
pelos olhos se desnudava

dele
todas as palavras eram mudas

nunca o regresso foi retorno
nem o será nunca
os sinónimos são uma falácia
inventámo-los por ignorância
as palavras sabem-no

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

meus pensamentos tantas vezes
são voos
pairam, disparam-se
vertiginosos

hoje são seixos
parados
aguardando ser banhados

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

a (nossa) alma
entre outras essências
faz-se de memórias e desejos
os que criamos, os que espalhamos e
sobretudo os que partilhamos

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

pétala
é a palavra que me abeira

distendida quase ousada

rompe nos lábios
embala na língua

suave e cheia
toma-me

sonância macia do toque
meigo aroma
pendula de cor

início do florido
alma em flor

domingo, 11 de janeiro de 2015

sobre mistérios: o da escrita

há um certo mistério na escrita
em toda a escrita
que é o mistério da criação
como de todas as criações.
desde o despontar do tema
até ao brotar da palavra
e ao emergir da sintaxe
a construção da mensagem
em forma e sentidos:
emoções e sentimentos:
profundidade.
arrebata-nos este mistério criador
que não é caminho
embora o possa traçar
nem é corrente
é fonte de nascente
que um outro mistério
talvez chamado destino
encaminha em cursos
que se encontram com outros
e se cruzam que é um forma de choque
se misturam e dissolvem
numa composição única — universal.
quer seja visível quer não
faz parte desse universo num determinado momento
tal como o sabor da água do mar
se influencia pelo elemento em menor quantidade
ainda que os nossos sentidos não o detetem.
esse é o mistério da escrita
a nota de sabor
que o autor sente na criação.

sábado, 10 de janeiro de 2015

o melhor de uma carta de amor é o aroma
aquela essência perfumada que chega de quem a escreveu

cartas de amor

as melhores cartas de amor que te dediquei
nunca as escrevi, nunca as escreverei
se o fizesse, seriam palavras tolas
nunca sentiriam o que nessas cartas eu contei
as que vais lendo quando te olho em silêncio

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

divagações

i
interponho-me ao tempo
sinto-o

ii
faço-me estaca e impeço-o de passar
iludo-me

iii
o voo de ave ignora o tempo
surpreende-me

iv
jamais o tempo se fará estacar
aclaro-me

v
viaja-se nele
que é de passar

vi
ainda espetado ensaio voar

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A meio caminho da 
nossa vida achei-me 
numa selva tenebrosa, pois 
perdera o rumo certo.

DIVINA COMÉDIA, INFERNO - Dante

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

tu estás aqui
abrigas-te na sombra deste candeeiro
o sol do dia nos dói na pele e na alma
da noite precisamos para nos olharmos
de olhares abrigados

tu estás aqui
entraste no laivo de sol
espremido pela fenda da portada
aguardas-me cúmplice
nós que do dia queremos a noite
escutamos-lhe os passos
e o sussurro sibilante de que se faz o silêncio

tu estás aqui
ensaias um voo negro entre as nuvens cravadas no teto
um bolor antigo que o canto encerra e o escuro alimenta
tu que não partes
eu que te deixo ficar

persegue-me a morte sem encanto
uma sombra que me toma
anuncia-me ainda mansa
meu definhar de velho
será do corpo a última morte que terei

sábado, 3 de janeiro de 2015

ubíquo

nada sei do sol que me aquece o colo
chega e nem sei se parte
sinto que me aquece
e que vem por bem
e aquele outro que vejo partir, desaparecendo
longe além do monte
parecendo irmão deste, sinto que é este.
a ubiquidade só pode ser sentida
ainda antes do saber.

a água
solta entre as pedras
ou sobre elas
sejam de mar ou de rio
ou até as do caminho,
passando
envolvendo
circulando lento ou parando
até correndo
e sempre entranhando
assim é a vida — a água.

já as pedras
são a quebra e a edificação
angulosas ou roladas
coloridas radiosas
sempre moldáveis
de belo efeito
no chão ou em queda no lago
acordam-nos para a vida
cristalina, fluida
consistente
e — a água — solta.