sábado, 31 de janeiro de 2015

à janela

vejo minha imagem projetada
na vidraça reconheço em mim
as mãos de meu avô em forma
algo em gesto mais forte que o ADN
senti uma força, a herança de meu nome,
tudo sobre a forma de fantasma

intemporal

há um certo egocentrismo no entendimento
do tempo que chega ou que passa
pior ainda no tempo que se agarra "— o meu tempo..."
de facto não se pára nem se muda no tempo.

como gosto das férias sem relógio, dos dias não contados...
é incontável este gosto, este prazer intemporal de ser no tempo

rendido

conforta-me
a luz que vem de ti
empalidece-me
quedo vulto fraco
nem a sombra teço
aninho-me de alma
em ti me aconchego
e adormeço

sábado, 24 de janeiro de 2015

voos, há-os diversos
em forma, consistência e sentido
eu gosto da cor que soltam
e do fresco odor que deixam

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

até onde a consciência permite o perdão de deus
é costume a benevolência sucumbir à piedade
nunca a culpa resolveu um só problema
culpado carrega o cheiro da vingança
a este fenómeno chamamos expiação e penitência

a luz do dia não chega para iluminar a noite
o luar resulta da projeção de luz refletida
a realidade é física e humana: formas diversas de projetar e refletir

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

da água que pára
sei o charco
recordo o lago
conheço a que pinga do rosto
estaca no chão
se dissolve na vida donde brotou

podendo as lágrimas ser de mar
poderia o mar ser de lágrimas

morrer
não é palavra
nunca foi
é ideia
encorpada fria longa
cinza triste
aparece persiste

inércia

entre
o fora e o dentro
algures
o lumiar ou o permeio
em ponto linha volteio

de
fora para dentro
movimento
o sentido desejado
o indefinido receio 

sábado, 17 de janeiro de 2015

um rosto feito de empedernido
cobria-o a pele do sorriso
pelos olhos se desnudava

dele
todas as palavras eram mudas

nunca o regresso foi retorno
nem o será nunca
os sinónimos são uma falácia
inventámo-los por ignorância
as palavras sabem-no

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

meus pensamentos tantas vezes
são voos
pairam, disparam-se
vertiginosos

hoje são seixos
parados
aguardando ser banhados

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

a (nossa) alma
entre outras essências
faz-se de memórias e desejos
os que criamos, os que espalhamos e
sobretudo os que partilhamos

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

pétala
é a palavra que me abeira

distendida quase ousada

rompe nos lábios
embala na língua

suave e cheia
toma-me

sonância macia do toque
meigo aroma
pendula de cor

início do florido
alma em flor

domingo, 11 de janeiro de 2015

sobre mistérios: o da escrita

há um certo mistério na escrita
em toda a escrita
que é o mistério da criação
como de todas as criações.
desde o despontar do tema
até ao brotar da palavra
e ao emergir da sintaxe
a construção da mensagem
em forma e sentidos:
emoções e sentimentos:
profundidade.
arrebata-nos este mistério criador
que não é caminho
embora o possa traçar
nem é corrente
é fonte de nascente
que um outro mistério
talvez chamado destino
encaminha em cursos
que se encontram com outros
e se cruzam que é um forma de choque
se misturam e dissolvem
numa composição única — universal.
quer seja visível quer não
faz parte desse universo num determinado momento
tal como o sabor da água do mar
se influencia pelo elemento em menor quantidade
ainda que os nossos sentidos não o detetem.
esse é o mistério da escrita
a nota de sabor
que o autor sente na criação.

sábado, 10 de janeiro de 2015

o melhor de uma carta de amor é o aroma
aquela essência perfumada que chega de quem a escreveu

cartas de amor

as melhores cartas de amor que te dediquei
nunca as escrevi, nunca as escreverei
se o fizesse, seriam palavras tolas
nunca sentiriam o que nessas cartas eu contei
as que vais lendo quando te olho em silêncio

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

divagações

i
interponho-me ao tempo
sinto-o

ii
faço-me estaca e impeço-o de passar
iludo-me

iii
o voo de ave ignora o tempo
surpreende-me

iv
jamais o tempo se fará estacar
aclaro-me

v
viaja-se nele
que é de passar

vi
ainda espetado ensaio voar

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A meio caminho da 
nossa vida achei-me 
numa selva tenebrosa, pois 
perdera o rumo certo.

DIVINA COMÉDIA, INFERNO - Dante

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

tu estás aqui
abrigas-te na sombra deste candeeiro
o sol do dia nos dói na pele e na alma
da noite precisamos para nos olharmos
de olhares abrigados

tu estás aqui
entraste no laivo de sol
espremido pela fenda da portada
aguardas-me cúmplice
nós que do dia queremos a noite
escutamos-lhe os passos
e o sussurro sibilante de que se faz o silêncio

tu estás aqui
ensaias um voo negro entre as nuvens cravadas no teto
um bolor antigo que o canto encerra e o escuro alimenta
tu que não partes
eu que te deixo ficar

persegue-me a morte sem encanto
uma sombra que me toma
anuncia-me ainda mansa
meu definhar de velho
será do corpo a última morte que terei

sábado, 3 de janeiro de 2015

ubíquo

nada sei do sol que me aquece o colo
chega e nem sei se parte
sinto que me aquece
e que vem por bem
e aquele outro que vejo partir, desaparecendo
longe além do monte
parecendo irmão deste, sinto que é este.
a ubiquidade só pode ser sentida
ainda antes do saber.

a água
solta entre as pedras
ou sobre elas
sejam de mar ou de rio
ou até as do caminho,
passando
envolvendo
circulando lento ou parando
até correndo
e sempre entranhando
assim é a vida — a água.

já as pedras
são a quebra e a edificação
angulosas ou roladas
coloridas radiosas
sempre moldáveis
de belo efeito
no chão ou em queda no lago
acordam-nos para a vida
cristalina, fluida
consistente
e — a água — solta.