quarta-feira, 24 de junho de 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

meu nascimento

sábado
4:00 da manhã e mais um pouco
ainda não nasci
crio-me no útero da noite
escrevo para distender o pensamento
exercito-me
mergulhado em recordações amnióticas
que me suspendem e alimentam
respiro
o ar vem-me da noite com umbilical desígnio
reteso-me numa ideia
procuro palavras que se distendam
quero exercitar-me para o nascimento
descreverei uma parábola
mortal encarpado à frente
projetar-me-ei até que a paisagem me receba
então será dia
a noite expulsa-me
o útero contrai-me os movimentos
pare-me um espécie de neurose noturna
e entrega-me dia fora

domingo, 21 de junho de 2015

o movimento

um gesto livre lançado ao ar
volume do corpo nu para o sol
uma folha solta livre vogar
lento branco enfunar de lençol

ainda um sonho que sonha pairar
ou uma praia drapeia ao vento
ou uma seara que sabe ser mar
eis as maravilhas no movimento

todas as vozes tingem a paisagem
estira-se a calçada envolta nos passos
e fica o colorido marcado no tempo

eu acredito em toda a passagem
em volume e cor, em linhas e laços 
e na força lenta do movimento 

contratempo

o tempo que me visitou
por mim passou gerundiando
em contratempo apressei-me
ele correu eu contra investi
quando tudo acalmou
encontrei-me assisando
o modo que vivi
como nem conta dei
do que por mim passou
e por onde eu passei

segunda-feira, 15 de junho de 2015

diário

a manhã, o despertar
todas as memórias são sonho
e todos os sonhos são um lugar próximo
perto de mais para ser autêntico
porém, distante, ao ser fantasiado
a luz ainda não é
os atos ainda não são
o dia ousa irromper

e urdir-se na teia do que não foi
acomodará os factos
sem ânsias, o que não era, será
e quando o for, estará planeado
ignorar-se-á o acontecer
excluir-se-á o erro - partícula
omnipresente do saber -
o modo humano de aprender

chegarei ao final do dia
aguardarei o início da manhã
acolher-me-ei no colo da noite
em amor tenro e largo
purificar-me-ei na madrugada
quando as orações despontam
quando os poemas brotam
antes do esquecimento

haverá, então, algo de mim que me relatarei

catastrofia

mãe
a vida que me deste
usei-a para morrer

quinta-feira, 11 de junho de 2015

sei o pouco que se morre de cada vez 
sei que aos poucos se morre muito
até à totalidade
até à eternidade

quarta-feira, 10 de junho de 2015

súplica

ai,
quem me dera ser
alguém que não sou
e que temo nunca ser

ai,
senhora dai-me a graça
de não me aborrecer
com a desgraça de não ser

ai,
bendita por amor
cumprirei a promessa
aguardarei teu favor

sexta-feira, 5 de junho de 2015

meu amor
não vejo senão a água dos nossos sonhos
corrente de alegria de rio
desmandada  sobre a terra
e nela cava o leito de seu ser

meu amor
não quero senão o mistério dos olhos
os teus que se quiseram meus
neles me alongo para ser maior
o bastante para abarcar o teu olhar

meu amor
não vivo senão o vício de ser amante
esse borbulhar de promessas
fios com que urdimos nosso olhar
a luz maior que nem o sol a alcança

quinta-feira, 4 de junho de 2015

um toque de baton

nada mais
um brilhozinho rubor
a confiança em ser

mãe

mãe
diz-me as horas do dia
diz-me que a noite é dos anjos
faz-me crer que os demónios poderão ser anjos
diz-me que sou o teu filho encantado
faz-me acreditar que as minhas asneiras não são importantes
sorri-me teu beijo de até-amanhã
abraça-me em laço feliz
deixa comigo teu aroma doce a leite e a lavado
amanhã despertarei à luz do teu olhar
vestir-me-ás entre cócegas e abraços
pentear-me-ás de pente molhado
elogiar-me-ás o cabelo forte e rebelde
e far-me-ás orgulhoso de mim mesmo
sentirei segurança no teu olhar
e direi baixinho para mim mesmo
mãe

terça-feira, 2 de junho de 2015

quem morre lutando nunca é derrotado
pode até perder-se todas as batalhas
ser derrotado é render-se e submeter-se

banho do tempo

assassinato é
hipérbole de facto
no subjetivo interpessoal
assassino é um termo da relação
vítima é outro
na vasilha do tempo
todos matam e todos morrem

segunda-feira, 1 de junho de 2015

eucêntrico

embebeda-me este andar por dentro
perscrutando o sentir daqueles
que por mim passam escancarados

ignorando o que mostram pelos olhos
que são montras que escondem da vista de outrem

ignorando que seus andrajos propalam como arautos
mistérios que ainda desconhecem

ignorando que no caminho espalham confissões
que seus passos se derreiam das tristezas e pulam alegria

embebeda-me a história que revelam
e como o fazem: momentâneo sôfrego
há tanto a contar num lapso de tempo

embebeda-me este cruzar de silhuetas que tudo diz
e nada ouve. uma surdez em estado de alma
toda garganta e nada ouvidos

sente-se o que está dentro bem muralhado
de fora protegidos

cor

espero nascer do branco página
para ser um ponto no vazio
depois outro e mais outro
e crescer linha que se eleva
curva e voa
como são as borboletas
na metamorfose coram

ao Eugénio de Andrade

Eugénio
matam-me todas as manhãs
se correm para a tarefa
sem gente

chegas
eu levanto os olhos
há um sorriso para ler
e tantos para escrever

insignificância

sou um homem pequenino
minúsculo

ao pisar-me, uma formiga magoou-me
imenso

nem tanto pelo peso
mas quis passar-me por cima