sábado, 31 de agosto de 2013

inevitável

a paz é simples, quer-se
tem a sabedoria de criança

a guerra é complexa
tem aquela sabedoria de adulto
a da inevitabilidade

charco

há água no charco
guarda o rosto da noite
guarda o raio do sol
guarda olhares enamorados
guarda a rezinga do velho
guarda o olhar de cão
guarda o rosto de criança
enquanto aguarda traquinice de meninos
em chapinos e ondas
e mistura-se tudo em alegria

a dureza do dia-a-dia tinha muros
entre eles e entre os dias
fez-se de pedras e de espinhos
nascidos e criados entre eles
todos os dias

e como ela temia desejar-lhe a morte
e se a comiseração de deus intercedesse?
como se vive com peso na consciência?
não confiava no deus em que acreditava
podia não ser tão bom quanto ela
que disso não tinha consciência

um beija-flor
dá às flores tudo o que precisam
atenção, toque
tudo com muito carinho

a importância dos segredos

na sabedoria criança
os segredos partilham-se com amigos

na sabedoria adulta
os segredos guardam-se

a paz

tem a forma de um sonho
tem a sabedoria de uma criança
a paz
nasce nos rios e nos riachos
onde a água corre
para tocar nossos dedos

livro de poemas

das folhas de um livro
dobram-se aviões de papel
voam em poemas
rumos da fantasia

raio de felicidade

o raio de sol assomou à janela
e entrou sala dentro

os olhares iluminaram-se

meu mar

minha paixão é de maré-cheia
de mar
salgada, de abençoada
roncante, de ondas possantes
pura, de espuma de mar
espraia-se, enrolando na areia

pensamento solto

há um sítio onde se desperta do sonho
aí mora a escrita
aí o sonho começa a viver

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

um porco que gostava de letras

o porco fugiu para a horta e comeu-lhe cada uma das letras. sim, sendo os porcos omnívoros, também comem letras. porém, resultou ser impossível dizer-se para onde o porco fugira: não havia palavra. tinha sido comida.
logo surgiram tantas letras que se alinharam em filas, como se quisessem dançar. ensaiaram composições novas para dar nome àquilo cujas letras o porco comera, depois de ter fugido.
alguns dos arranjos eram impronunciáveis, uns quantos hilariantes e outros eram normais. de todas as hipóteses, acabaram por escolher HORTA, por parecer a mais bonita: — aquele H mudo dava a distinção merecida à horta — concordaram todos. até o porco.
a palavra era igual à antecessora, só que agora todos (letras e porco) sabiam porque fora escolhida.
as letras gostaram do convívio letra-a-letra e das sílabas e das palavras simples e compostas que formaram.
o porco continua na horta — agora com um novo nome — e se o deixarem comerá todas as letras, incluindo o H mudo, que confere distinção.

lucidez

já vivi dias de grande lucidez
neles senti-me pronto para morrer
neles dei o verdadeiro valor às coisas
incluindo a morte e a vida
que sendo irmãs, as vemos como inimigas
pelo estado de obnubilada consciência
em que habitualmente nos instalamos

a lucidez chega com o perigo
com a míngua, com a despedida
e com o definitivo
manifesta-se pelo óbvio
com que valorizamos um céu azul
ou um sorriso de olhar brilhante
e com que identificamos o supérfluo comezinho.
a lucidez não perdoa o arrependimento
do olhar pregado no chão
a menos que sejamos lúcidos para soprar sorrisos
e sentir-nos-emos prontos para morrer.

fratria

o sapo perguntou à rã:
somos irmãos?
podemos ser, mas sou eu quem coaxa.
respondeu a nova irmã do sapo.

da poesia ao poema

em poesia sente-se a profundidade
do humano desconhecimento
e das coisas triviais
que se descreve com palavras conhecidas
e outras inventadas

o poema é o momento
sincopado pelos arranjos de palavras
para debelar a indiferença

entre a poesia e o poema
há pontes inacabadas
os pensamentos dos poetas

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

raiz de árvore

a raiz das árvores
sei que não é quadrada
porque as árvores servem-se dos números
mas não são de números.
as raízes das árvores são profundas
entram pela terra adentro
até ao coração e libertam os vulcões
são como a paixão da terra.
às vezes atravessam o mar
e tomam a forma de algas
e acolhem os peixes
(os peixes pulam nas raízes)
e o mar agradecido
vai arrefecendo os vulcões
para que não queimem as folhas das árvores.

as árvores, o mar e a terra são amigos
por isso nos deixaram crescer
tal como às flores, aos pássaros
e aos insetos cantadores do verão quente
e nós reconhecidos fizemos barcos de árvores
para conhecer o mar
e só depois aprendemos os números
e descobrimos a raiz quadrada
que sabemos não ser de árvore
porque conhecemos a árvore.

pensamento

talvez inútil seja uma forma in de ser útil...
já uma inutilidade é acharmos a idade útil e in

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

cheguei
como a luz, sem vento
como o piscar de olhos
como o reflexo pupilar
como o ruído da noite
cheguei

sem mais nada

sussurros do acordar

o sol sussurrou-me um raio pela fresta da janela
e sussurrava aos retratos de gente antiga, imponente
que posava sussurrante aguardando o clic
que os poria na sussurrância da cómoda que outrora compraram
ou na pendurância sussurrante da parede, cuja cor escolheram.
fizeram-se sussurros em memórias
história daquele quarto cheio de histórias sussurradas
tão sussurrante e tão sem mofo

sussurros da manhã

o sussurro fumegante do café
o sussurro estaladiço do pão
a manteiga que sussurrava a torrada
o lá fora sempre sussurrante
as flores sussurravam entre si
as borboletas voavam em sussurros
o vento sussurro que sussurrantemente sussurrava
os olhares sussurraram algo
e um beijo sussurrou em mim

teus passos

fechei os olhos, precisava
sentir teus passos no pensamento
tinham um sabor a carícia
soavam como soalho de lar
iam e vinham, rondando-me
sonho
e sou o centro do universo

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

sem tempo

tanta que tu és de madrugadas
de pores-de-sol, de tempos de nada
namoras-me ronceira
na orla de calmaria que tem a paz

deixámos a meio o canto dos pássaros
dissemos todas as palavras pela metade
fizemos o mesmo com as frases
as carícias e as juras

temos de nos encontrar
sem precisarmos de argumentos

aconteceres

a manhã, amanhece
a tarde, entardece
a noite, anoitece
enquanto o dia acontece
tecendo-se, também tece
a tela do dia seguinte

sábado, 24 de agosto de 2013

lá, onde a terra parece tremer
são abraços de amantes
tudo pulsa mais forte
mais quente e mais

meu amor

quando o vento me soprou a face
também me envolveu o corpo
reconheci teu afago
tuas mãos, e meus lábios
transpiraram, suave:
— meu amor

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

a sonância de um poema é das palavras, entoadas
como notas faladas por alma de criança
ária de coral, encanto da poesia
em qualquer língua
em qualquer lugar
em qualquer momento

uma corda da roupa no horizonte

o horizonte tinha uma linha
era uma espécie de corda da roupa
ao longe
onde pendurava pedaços de coisas
coloridas, drapeantes ao vento e ao tempo
era lindo.

uma vez pendurei coisas na parte de cima da linha
o que parecia impossível resultou bonito
na mesma corda havia algos que não caíam
e outros que não esvoassavam
de um lado e do outro eram coloridos
drapeantes ao vento e ao tempo
reluziam ao sol, era lindo.

tentei-me e tirei a linha do horizonte
com ela foi a corda da roupa
os pedaços de coisas caíram,
dispersaram-se, amontoaram-se
e movimentaram-se; uma dança
entre o céu e a terra, sem linha.
sem corda
drapeiam ao vento, dançando
reluzem ao sol, fantasiando cores
formas e movimentos
que só à imaginação interessam
e tornam feliz quem ali desvenda poesia.
é lindo.

divagando

na divagação, os meus pensamentos
são desejos tresmalhados e pedaços de nexos
que convivem no devaneio, aquele lugar de liberdade
regido pelo princípio do bem-estar.
na presença da escrita todos se alinham
parecendo o que nunca foram:
ordenados.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

vento

— o vento de ontem beijava, abraçava, era ousado
e o vento de hoje oscula, roça, é tímido

— na fonte dos ventos há tantos
e cada um só nos cruza uma vez
passa, é um vento...

— há a fonte dos ventos?

— é num sítio que fica entre os montes altos
está ligado ao céu
é lá que guardam todos os sopros dos santos
os de acender o lume, os de soprar as migalhas
os de soprar as sopas e o caldo quentes...
é que no céu não há ventos

— é, o vento é coisa do céu...

além

tenho o condão de olhar o silêncio
sem ficar esperando
pela leveza dum beijo te aproximaste
desvendaste-me que sou como tu
que gosto de estar comigo
tens o dom de me entender

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

o silêncio
de onde me grita a tua voz
que não me chama
que não se zanga
detém a saudade que se ouve

o dia se esvaziou ao fim de tarde
e com ela o sol se foi
a noite chegava cheia de estrelas
para a infinitude de um luar
foi lá que encontrei teus olhos

diálogo

— psiu!
— porque me mandas calar?
— porque não me deixas ouvir-te.

as meninas dos olhos

somaram gerúndios:
correndo, pulando, gritando, rodando
chamando a algazarra
um passarão grande
fazendo de conta ou faz de contando
colorido, com penas de almofada.
trazia com ele a história pulada,
a princesa apanhada,
o rato esconde-esconde,
a dona macaca sempre quadrada
que queria a patela muito bem saltada,
a serpente vidente que fazia de corda
e qua adivinhava os erros das contas
e a tabuada.
e o recreio de tão animado
estava vistoso, estava todo inchado.
e hoje eu sinto-me recreio.

quando o sol me roçou as meninas dos olhos
o recreio chegou

dia-a-dia

houve um dia que não acordei
acho eu
espreguicei-me de olhos cerrados
levantei-me aos bocados
lavei-me, saí
trabalhei: telefonei, escrevi
tomei café
pus meus olhos assoalhar
vi uma folha cair
desenhei no canto do papel
tomei notas
encerrei a reunião
regressei a casa
jantei
e à noite não adormeci

imponência

e foi um ar que nos deu
um voo rasante de gaivota
vadio, que perseguimos
elevando o nosso olhar

utopia

sonho

na margem
no bordo
na beira
no início
no cimo
no alto
no ondeante

e ao primeiro passo a vida começa
e encho meu sonho de vida

meu tino
recusa a falta de tino
que o destino tem em si

meu tino
não procura culpado
para o arrependimento
nem para este sentimento
de sentido tresmalhado

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

meu vento maroto empurrou a água do rio
fez-se onda de água rebolada, e tanto que gostou
deu uma gargalhada de água chocalhada
subiu uma pedra e numa pulada
caiu noutra água, e mais uma onda rebolada
o vento agora mais vigoroso soprou bem soproso
na rebolada onda de água que soltou um marulho
bem do fundo do peito e pôs-se a jeito
queria que o sol a fizesse espelhada
percebendo-lhe a vaidade, o vento com vivacidade
chapinou a água tão agradecida, feliz e abrilhantada

meu vento
tem um meu de amigo

não me dá posse
dá-me intimidade e bem-estar

nossas mãos se engramparam pelos dedos
o que seria verdade se fossem ferros
ou se nós fossemos ferreiros
mas nós que quisemos ser árvores,
arbustos e flores
então engavinhamo-nos de mãos
assim existimos de dedos enrolados
mais fortes que aço

domingo, 18 de agosto de 2013

quando o mar desaguou no rio
que eu vi, corrigiram-me
são os rios que desaguam no mar

quando mostrei o mar entrando rio adentro
dissertaram-me sobre as marés
e percebi que pouco sabiam de vizinhanças
de águas, de rio e de mar

quando me reduzi a um punhado de letras
nasceram-me palavras para descobrir cores
cheiros com aromas de letras
e enrolos de língua
só pronunciáveis em pensamento
e de boca fechada.
também despontaram palavras como lavândula

a linha que une
também limita

tirei a linha ao horizonte
procurava sem limites
e a linha limitava

sábado, 17 de agosto de 2013

sentidos de filho

minha mãe chamava-me filho, era aconchegante
meu pai chamava-me filho, protegia-me
minha avó chamava-me filho, era mãe duas vezes
minha vizinha chamava-me filho, estava enganada
minha catequista chamava-me filho, era língua de deus
minha mulher chamou-me filho, foi querida
um desconhecido chamou-me filho, pareceu-me que juntou mais qualquer coisa

da ponta do meu lápis sai uma linha
única, sozinha
que se enovela em voltas e se enrodilha em letras
palavras e pontos que interrogam
exclamam e terminam.
às vezes tenho um pauta musical
outras, o que me parece um poema
outras ainda, um desenho lindo de criança
a maior parte delas fico com uma garatuja de adulto
que só um adulto entende.
então, eu fico sem sentido.

o que sei, sonhei-o no fundo de um céu bem azul
onde mergulhei bem além das nuvens, do sol e dos outros astros
lá, perdi a linha onde meu olhar sempre se agarrava, no horizonte
agora meus olhos pousavam em pontos, pontos bem soltos e a linha
seria a que eu ousasse e a minha fantasia sonhasse

o passado guarda-se nas recordações
o futuro guarda-se no olhar
o presente é, não se guarda

as memórias são presentes
de recordações olhadas pelos olhares
aqueles onde se guarda o futuro
costurados com a linha do horizonte

minha casa vive rodeada do verde que as árvores pintaram
e as relvas espraiaram-se só para que os pássaros as passarinhem
e assim vai sendo entre o passado e o futuro: o vento chega
puxa as folhas às árvores, passa a mão nas cabeças das flores
e roja-se na relva: quer sentir o verde 
enquanto as aves bicam no chão, que é a sua forma de passear
e deixam-me apreciar, porque também me vêem de verde.
há um sino na torre da igreja que canta de meia em meia hora
é um tempo religioso, da criação, para poetizar o tempo real
que construímos árido e contundente como o cimento que modelamos
do qual às vezes não gostamos.
no tempo real, minha casa está cercada de um jardim
é feita de pedra e cimento por homens de máquinas medonhas
com que rasgaram a terra e o céu por ela.
no tempo poético, a natureza deu-me o direito a fazer meu ninho
e eu sou um pontinho negro, pairando entre o verde e o azul do vento.
o tempo poético é daquela meninice que há em nós
que fantasia, pula e sorri com o futuro nos olhos
que bom que é ser feliz.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

pensamento

existe sempre uma dificuldade em nos mantermos vivos
a vida vivida nunca será fácil de viver, para ser gostosa
a vida fácil, muito fácil, tem tédio e (geralmente) é fastidiosa.

incrédulo

por ti tudo será possível
até o céu encostar-se à terra à procura de aconchego
e os anjos, que sempre vimos como estrelas
entrarem no paraíso, que afinal
sempre esteve aqui, contigo, onde o semeias

por ti tudo será possível
até as rochas entoarão hosanas lá das suas alturas
e os anjos que pensávamos estrelas do céu
que afinal sempre esteve em ti, rodar-te-ão
serão putos de um recreio, felizes por ali estares
 
por ti tudo será possível
eu sei, só não sei dizer, nem escrever
também não sei desenhar, como te sinto
e não me parece que caiba nas 4 letras de amar
embora eu saiba que por ti tudo será possível

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

confissão

escrevo-te em confissão
o que guardo para mim
escrevo-te segredos
que sopro no ar
liberto os pecados
que escondo na aragem
pela escrita
que me confessa
sem penitência
rezo o poema

desvendamento

escrevo de ti
a cumplicidade dos segredos
a cada revelação
algo desvendo de mim

o que escrevo de ti
algo que desvendo de mim

terça-feira, 13 de agosto de 2013

infância

era criança o suficiente
para desenhar tudo o que via
criava histórias com cenários
ilustrando pensamentos
sem balões. sem diálogos
os desenhos se declamavam
e alimentavam-lhe o sorriso
tão bem que o fazia
com a mão abraçou meu dedo
para que eu o entendesse
e com ele sentisse em poesia
que sabia ter-lhe nascido

talvez quisesse que o lembrasse
se algum dia se esquecesse

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

a propósito de Ennio Morricone, II

descobri!
agora sei porque nasci
para te seguir, de ouvido
correr e andar
por onde a imaginação me quiser
e tudo mais que de mim vier
será a tua música a latejar

dignidade

serve-me a morte, fria
em porcelana dura
finamente decorada
nada esbotenada, não a quero cortante.
servir-me-ei da morte fria com talher prateado
servir-me-ei com honras de convidado
a talharei e comerei bem mastigada
de boca sempre fechada, engolirei silencioso
sorrindo e apreciando, ainda
que me saiba asqueroso, a comerei até ao fim
agradecendo ao cozinheiro
seu empenho em meu repasto
sua atenção em mim.

ociesia

há uma certa poesia
que vive nos jardins
soa a cigarra
e alimenta-se de ócios
e
delicia-se num dolce farniente
no cheiro de um livro de poemas
nas viagens dos pensamentos vagos
no belo, sempre belo sorriso da amada
e no desejo preguiçoso
de escrever banalidades em forma de verso

domingo, 11 de agosto de 2013

estrofe

pois
quando as árvores respiram
inspiram poetas
expiram magia
e sopram do bosque
ares de poesia 

melodia

toco-te
como as cordas da minha guitarra
soltas um acorde
encanto-me

sopro-te
como o bocal da minha harmónica
soas uma melodia
encanto-me

acaricio-te
como às teclas do meu piano
desenrola-se a magia
encanto-me

dançamos
a leveza de uma valsa
a paixão de um tango
exorcizamos

desatamos
aquele mesmo sorriso
de adão e eva
quando descobriram a nudez

sábado, 10 de agosto de 2013

a propósito de Ennio Morricone

há músicas que têm o dom de nos completar
depois de as ouvir
torna-se difícil resistir a escrever um poema
que sempre se sentirá de um belo
até à lágrimas

amigo imaginário

escrevo-te da imaginação
aquele lugar
onde tudo é imaginário
como tu meu amigo

escrevo as histórias
imaginárias
que ambos vivemos
de uma verdade imaginária
tão real
é que a realidade se imagina
e a imaginação se realiza
o segredo da nossa amizade
que tecemos nos silêncios

a viúva

existia debaixo de um negro de lenço
o corpo despontava das vestes negras
num branco seráfico de pele
a que luz das velas amarelecia
de amarelecido de cera ardente
os olhos tomaram-se do luto
num corpo, como as velas, encurvado e gotejante.
havia ainda algo seu, pouco estimado
podia ser alma ou simplesmente algo
perdido, abnegado, esperando o momento
além daquela luz de vela e do luto de viúva
que a afastava dali.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

pura poesia

a poesia sem palavras
chega no vento
soa das árvores
declamam-na as folhas
dançam-na as borboletas
também as abelhas e as aves
desenham-na as crianças
em linhas simples
em formas planas, transparentes
infância dos olhares sorridentes

de passagem

cruzei com um olhar de gaivota

era a serenidade determinada
a beleza de um voo livre e certeiro

esclareceu-me que lhe valia
a sua independência vadia

íntimo

seja quando for
o mar entrar-nos-á pela porta dentro
quererá visitar-nos
estender-se-á a nossos pés
mergulha-nos-á os tornozelos
molhar-nos-á os joelhos
e nele banharemos as mãos
seduzir-nos-á para nos tomar o corpo
nas ondas que nos fez, à medida
intimamente, acreditamos
algures, nós e o mar
entrevimo-nos gémeos
quando nos sentimos irmãos

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

poliversos de amante

o estado de amante sente-se como as estrelas: pontos, reminiscências
que encantam um belo de um céu estrelado.
partículas luminosas, aparentemente insignificantes
que são tudo: são a força do universo, talvez o prenúncio de poliversos.
tal como o amor: é a anunciação de tantos todos, feitos de pequenos nadas.
a mais poliversa das existências.

o estado de amante sente-se como os sorrisos; encantam, encantadores
geram encantamentos que se perpetuam entre a saudade e o prazer.
o olhar corre atrás deles, perde-se e encontra-se com as memórias
também elas repletas de sorrisos.
quando regressa, o olhar trás um sorriso,
que capturou nesses poliversos extraordinários de recordações,
que planta na alma, aflora no rosto e resplandece no olhar:
naquele mesmo que trouxe o sorriso.

pequenos universos que moldam a natureza poliversa do amor
que só o estado ébrio e alerta de amante entende;
o estado próprio dos amantes.

perfume de mulher

meu estado de amante teu, sente-se como os aromas: instala-se. nada de narinas.
fecho os olhos e toco-te o odor do teu pescoço, naquele exato ponto
em que se cruza com o da tua orelha e com o perfume da raiz dos teus cabelos.
irresistível;
escapa-se um beijo que te pouso demoradamente no rosto, segredo ao ouvido,
porque meu rosto quer colher o morno aveludado do teu.
tão perfumado.
a fragrância do teu ombro encaminha-me até ao teu peito,
como sempre
repleto de aroma a conforto morno, leve olência:
o equilíbrio perfeito de maternidade e de amante.
ah! e o cheiro terno dos teus braços. como é doce o universo de sensações
quando neles aconchegas minha cabeça no encontro com teus seios
perfumados de mulher.
o aroma do teu ventre chega-me quase impercetível; vem na aragem
e traz um doce florido,
aromatizado de quente de carinho e de intimidade de virilha
odor gáudio de especiarias,
nascido no vaso que te fez mulher: mãe e amante
e nos afeiçoamos
enleiam-se estes aromas em bálsamo e nele me perfumo de ti.

criação

deus criou os poetas
que escreveram as orações
e que ensinaram a rezar
os poemas
que eram orações declamadas.

ora, sabe-se que os poetas
gerados da criação
foram além das profecias
então deus fez os profetas
e para os poetas, criou a poesia.

aqui

estou aqui
tens-me se me quiseres
e se puderes ter-me
que não seja porque te pedi
mas porque me queres
mais, me desejas
e sem que me supliques
sente-me onde estou
aqui

lágrima de vida

ardem-me os olhos das memórias que se esfumam
ardem-me os olhos do farrusco frio das cinzas
ardem-me os olhos do pó da terra
a sequidão procura em mim a lágrima
para romper a esterilidade

se fosse possível à terra chorar
jamais sentiria a aridez
e o vento seco seria bem-vindo
pois enxugaria em vez de ressequir

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

anseio

quero ser um rio de corrente calma
buliçoso nas rochas
navegável por barcos a remos
onde as árvores bebem e tocam o céu
o leito onde flores flutuam
e espraio-me ao desaguar

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

silêncio

não digas nada
deixemos o tempo passar
sem nada dizer. e tu
sem nada me contares
não digas sequer que o tempo está bom
ou que vai chover
não gastes as palavras
é que os silêncios não se preenchem
e muito menos com palavras
as palavras só os encobrem
aparências
não digas nada

um dia ouvi
(se calhar inventei)
que os silêncios se quebram.
era criança e imaginava-os cristais
teriam mil cores,  ou mais
nunca as contei.
todas lindas para me encantar
na minha certeza
que o silêncio nunca fora de ouro
era o meu saber, a minha riqueza
a minha maior idade.
por isso prezo o silêncio, preciosidade
que não quero ver quebrada
mesmo se pesado, denso e acre
como agora
não digas nada.

não digas que o tempo acabou
porque o tempo nunca acaba
o silêncio distende-o
até que seja amplo e moldável
eterno.
consta que a eternidade nasceu em silêncio
que sempre foi silenciosa
como os desertos tão silenciosos e eternos
e como as almas
sempre eternas
sempre silenciosas
não digas nada.

não digas nada
nem à partida nem à chegada
o silêncio não é ausência
e nunca será nada
o silêncio é uma melodia
que podes fazer tua
é no silêncio que falas à lua
é no silêncio que tocas o sol
é no silêncio que te ouves a ti
e pares um poema
bem lá do fundo da imaginação.
e soltas teu simples desejo
"não digas nada".