terça-feira, 31 de março de 2015

sentidos em poema

i.
(à partida)
sonhei
com a água que embalava o bote
feito uma concha aberta ao céu
acolhia o pescador que ruminava o poema
que se lhe escrevia nas rugas

ii.
(ouvindo)
sonhei
marulho de água embalando o bote
chocalha na concha aberta ao céu
o pescador trauteava gaivota
restolhava o poema que se gravava nas rugas

iii.
(cheirando)
sonhei
cheiro fresco a água ampla de embalo de bote
aroma marinho de concha aberta ao céu
essência de suor e peixe em perfume
hálito a poema que se desprende das rugas

iv.
(tateando)
sonhei
conforto de líquido em útero
macio sulcado de concha aberta ao céu
aspereza do olhar estendido de pescador
acariciava o poema crestado nas rugas

v.
(vizualizando)
sonhei
mar e céu de azul fundo
conchas em barcos voltados ao céu
pontilhava o homem, pescador de versos
macerava em poema escrevendo-o a rugas

vi.
(saboreando)
sonhei
salgado nos lábios e depois no corpo
frescura sabor da concha aberta ao céu
degustei o poema tempero de pescador
que repousava nas rugas

um homem final é
um retábulo, na aparência
de recortes e de epitáfios

rezo e escrevo
penitencio-me
divino-me para ser
homem comum

nar-siso

entristece a mágoa no olhar
devora
o zé da chuva nunca feria
a poça
agitava-se a água concêntrica
gota-a-gota
amargura a desgastar
vagas onde o zé via
na água que mais amava

com a montanha

cedi-lhe as rugas
e ganhei
enriqueceu-se de vales
profundos
ficamos uno, ignorando-nos
companheiros em silêncio
éramos outra coisa
nós
e nossas as marcas da vida

domingo, 29 de março de 2015

criador

poeta sabe renascer. e fá-lo
pelo poema
desvive sugado para o escrever
e ressurge na alegria
ao sê-lo escrito

poeta é o criador de deus
só um poeta criaria algo maior
que ele mesmo e far-se-ia criado
pela sua criação. só um poeta sabe
renascer assim
morre e se pare sonhando

sexta-feira, 27 de março de 2015

não mais

não é mais bonito
o sonho que me pare
dia-a-dia
temo ter entrado em paridura
diária, uma rotina qualquer
nascer em sofrimento
como  modo de estar
ou, se calhar, de ser
sonâmbulo
não é mais bonito

talho a tanger poeta
não é mais. bonito
é outra coisa
e poeta também

quinta-feira, 26 de março de 2015

oblíqua perspetiva

se o inferno fosse ali ao voltar da esquina:

o inferno estaria por perto;
o céu seria a praceta mais além;
à esquina, a ostentação conviveria com a miséria;
no mesmo ângulo, o poder passear-se-ia entre a submissão;
estaria próxima a justificação da maldade;
dobrando a esquina, a destruição pareceria progresso;
saberíamos como o dinheiro pareceria uma bênção;
àquela esquina o sonho mataria outros sonhos e assassinaria a utopia,
esta vive mais além, numa praceta qualquer, onde as pessoas circulam e estão.

sobre estreituras: a do poema

sou tentado a escrever, a minha forma de dizer – um dizer trabalhado
em busca do espontâneo (meu paradoxo) –, que
a escrita de um poema é um processo de acanhamento,
uma contração que o transforma numa estreitura.

o poema mais belo é uma ideia, singelo;
nele rejubilam as palavras, fossem crianças num recreio.
pela escrita, primeiro organizam-se as percepções e
dispõem-se as crianças em tamanho e sexo,
idade ou brincadeiras preferidas e obter-se-á consistência na descrição;
se se conjugarem os tons das vozes e o movimento das crianças
ganhar-se-á a sonância e o ritmo, a melodia;
mas a magia do recreio, a folia da espontaneidade de estar,
chega diminuída
e só quem brincou num recreio estenderá a descrição.
e só quem viveu aquela ideia entenderá o poema,
pois a palavra trabalhada submete o espontâneo e modela a criação,
circunscreve os significados do significante e
compromete a paleta das acepções
que afluíram ao poeta, provindo desta última a essência da poesia.

a escrita de um poema é um exercício de aproximação
de realidades, que a realidade são encontros e reencontros
de realidades que poderíamos chamar ideias,
e a escrita é um instrumento canhestro para as expressar,
contudo, necessário, pela distância – tempo e espaço – entre leitor e autor.
a poética é o estilo – personalizado – de transcrição de ideias
em poema, é uma estreitura por definição, para que se entre na poesia
onde tudo é simples, fértil e amplo como o olhar.

porém, há uma beleza incalculável na estreitura,
por exemplo, a de uma rua da baixa. quanto mais se entra nela
mais profunda e elevada, mais larga a poesia.

quarta-feira, 25 de março de 2015

13 aforismos

  1. o horizonte não tem linha: linha é uma coisa
  2. céu e terra são o todo mas não o tudo
  3. a vida é-o com a morte e esta também se vive
  4. a mentira desfaz-se azeda e se apura a verdade
  5. pode viver-se no verso e no inverso desconheço
  6. as memórias são tesouros: restauram-se e revivem-se
  7. fantasia é a cumplicidade entre a imaginação e o desejo
  8. nunca toquei a liberdade mas noto que me cerceia
  9. a liberdade não é a pomba é só o ar do voo dela
  10. as coisas grandes não se guardam, envolvem
  11. as coisas pequenas encerram, parecendo que se possuem
  12. todos os dias se iniciam a meio da noite: iluminam-se pela manhã
    entardecem pela tarde até à noite, quando e onde se sucedem
  13. o nascer do sol é um mito, a realidade é o reencontro

nascimento do poema

a manhã começa
o poema feito esboça-se
os símbolos despem os significados
a metáfora desagrega-se
o verso balbucia

é a tarde da manhã que começou
as palavras esfumam-se ao tempo
a rasura desvanece-se no sentido
a folha é branca e singela
o pensamento paira nela

é a noite da tarde que foi da manhã que iniciou
poema é a ideia
solta, livre em crescente
vagido no silêncio dos silêncios
nasceu

terça-feira, 24 de março de 2015

momento

todas as horas se apagam
fossem luzes, que o não são.

meu desejo cumpre-se.
ouço-me no silêncio
vejo-me na escuridão
no tempo sem trastos encontro-me.

nem passado nem futuro.

eu, comigo mesmo, agora
o momento.

terça-feira, 10 de março de 2015

... um homem em lema maternal de ser pai.

surreal

agora que escrevo sem caneta
pingam-me as letras dos dedos
perfilam-se em palavras
estas em versos
estes em estrofes
e estas fazem a companhia
sendo as estrofes pelotões
os versos linhas de soldados
e as letras agrupadas em palavras
os grupos de homens

a profundidade é infinita
entre quem arrisca tudo
viver morrer escrever

por mais que deteste a associação
da guerra à poesia

oramento

ai de mim
que nunca soube
andar de mar
em barco inquieto
que é a vida:
afogamo-nos em nós mesmos
vamos ao fundo
profundo de nós
abandonamos a tona
onde a vida vegeta
e os vegetais ostentam
a verdura em todas as cores
além do verde
há os azuis
que fazem o mar e o céu
onde se afundam
em azuis frios de morte
os barcos que navegamos
como vidas que perdemos
antes mesmo de nascermos
ingénuos impreparados
mas puros
em purificação!
deus das vidas difíceis
ai de mim

sexta-feira, 6 de março de 2015

os dias, pare-os a noite
o que faz dela única como as mães
os dias, sendo irmãos,
são diferentes entre o doce e o amargo

quinta-feira, 5 de março de 2015

ao fim da tarde com Pessoa

o que escrevo vem da alma
de meu mestre que sempre foi
discípulo de si mesmo e soube,
melhor que ninguém, o aprender.

escreve-me da inspiração, rogo-lhe.
eu deixarei a mão morta,
livre, para que a possas movimentar
e dar-lhe vida, que tanta tens.

pela morte se liberta
e pela entrega se vive
e nasce a vida
inspira-me...

confusão

desertam de mim as palavras.
eu fico. vazio é uma sensação muito minha
que nem as palavras conhecem
nem as proferidas em oco sentido

este ser casca ensurdece-me
sou todo ecos.
o verbo reverbera não conjugado
eu nada entendo

terça-feira, 3 de março de 2015

poetas

já viram um poeta escrever?
fascinante!
todo ele é voz
é movimento
o corpo baila em torno da mão
num eixo que ela mesma traça
é o poema, vivo
as palavras que ficam
são a penumbra imagem do momento
e se recria se outro poeta as lê.

já viram um poeta ler?
fascinante!
todo ele é voz
é movimento
o corpo baila em torno dos olhos
num eixo que eles mesmos traçam
é o poema, vivo

as palavras, se abandonadas
são a penumbra imagem dos momentos
quando um poeta escreveu
e outro leu

sopro de luz
rasante
em nascente poente
sem meios dias

os corpos resplandecem
na contra-luz

do silêncio

silêncio
a sonância que percebemos
de nós mesmos