sexta-feira, 23 de outubro de 2015

ler o recorte de uma pétala

ler o recorte de uma pétala
caligrafia simples
perene
expõe a vida que corre ou escorre
pinga ou traga
e resplandece
frágil de tão frágil
e robusta mais robusta
que o franzino gesto
que a toca como a sente sem a ler

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

inconsciente

apagas a luz
sem que percebas a razão
é que estás às escuras
e a luz acesa é uma ilusão
empregas a 3.ª pessoa
e queres falar de ti
em teu estado apagado
procuras a luz sem te ofenderes
e apagas-te

meta chama

chamas (e dizes chamas
e não chamas dizes)
à janela, acesa
e à luz, aberta

porque chama tem a ver com luz
e dizer não vem ao caso
porque chama é o que sentes
chama é o que acende em ti
quando chamam teu nome
e o que dizem é secundário

a palavra é plástica
tem imagem no som
e ambos geram movimento e forma

o poema finge ser arquitetura
dinâmica em obra feita

entendes porque janela é acesa
e porque a luz se abre
e a chama que se fez em ti?

pudesse eu e chamava-te

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

o que por silêncio nunca foi dito
o que pela palavra nunca foi escrito
é sentido não revelado
um esdruxulamente sentido
ou um sofregamente inspirado

sobre o gesto

a poesia já lá estava
chegou o gesto poema
aprimorando

havia um criança debruçada sobre o gesto de
pegar no lápis desenhando flores
à volta do poema, para ficar bonito, dizia
de língua mordida entre beiços, fungando
o nariz ranhoso que adiava limpar
que o empenho no florido era tudo

aqui vou fazer uma nuvem
porque as flores e as histórias gostam de nuvens
com o sol por trás, explicava entregue à criação
que gesto poema emergia do mar de poesia

onde mergulha o pensamento
o de quem gesticula tecendo
o de quem lê pelo gesto também de ler

abraços
enleios longos leves em laços
fortes mais que braços
que braços dão
que braços levam
estendem
soltam
braços que partem do coração

terça-feira, 20 de outubro de 2015

*ismo em solilóquio de um *ista

vou mudar de política
deixarei de comer criancinhas ao pequeno almoço
alimentar-me-ei de reformados e de pensionistas
têm boas carnes, embora mais duras
já sei como os cozinhar: em lume brando
já vi como os conservar: congelo-lhes qualquer coisa
os desempregados dão um bom petisco: temperam
por pouco dinheiro
vou organizar um festim e farei convidados
os que não foram comidos, ainda
regalar-se-ão por usarem talher nesta refeição, ainda
os jovens são os mais ariscos, partem
e não é fácil tirar-lhes o filet
das criancinhas tenho pena, muita pena
há cada vez menos
e eu que gosto tanto delas

anti-nada

acreditar?
já não acredito em nada
e também de nada duvido

nada é o denominador comum
e não me convence
nada

é um despojo
a que só a insensatez atenta
- hoje não me apetece nada
ou
- hoje não me apetece

aqui e sempre
o nada tem a desfaçatez de acentuar
o nada que há em nada

se acredito e duvido
se me apetece e não
isso é comigo
e não digo ninguém que é alguém em lugar de nada

felicidade

gostava de ter um pássaro
gostava de ter um pássaro e dar-to
gostava que tivesses um pássaro
gostava que fosse eu a dar-te o pássaro que tivesses
gostava que o pássaro tomasse algo de ti
e fugisse
voasse longes e pertos como fazem os pássaros
e chilreasse para te tentar
e tentada saísses pela janela
ou voasses da varanda
feliz
e aterrasses aqui como quem regressa de um pulo
depois aninhavas-te assim
confortavas-te assim
aconchegavas-te assim
e querias o ninho que um pássaro teceu de mim

sou
sou transitório
não como quem está em trânsito
nem sequer em transição
sou transitório por definição
sê-lo-ei

definitiva é a morte que em mim lavra
definitivamente

a chama

arde
arde só
arde porque não há luz
arde sem pensares em tochas
nem em reflexos nem em iluminar
arde somente
fluente esse fogo que há em ti
labaredas como palavras
meu coração puro
com a ideia noutros corações
flameja ardendo erguido
ao alto como poema
volátil como crescer

se o pássaro tem medo de voar não tira os pés do chão
e nunca será
aninhar-se-á
o tempo o fará rastejar
habituar-se-á a abrigar-se no chão
será minhoca de tanto não encarar a luz do dia

arde e eleva-te se o ar o quiser
pulsa
há olhares que precisam do teu
a fogueira é um encontro de labaredas
é celebração
arde só
que tão escuro está

domingo, 18 de outubro de 2015

pela voz de peito falava com ele
o peito, ponto de ecos
profundos dos fundos a reverberar
ecos das coisas que um dia foram
física em ciência de magoar

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

cuidar da primavera

agita-se o sol e o céu
os frutos nas árvores e também as folhas
os pássaros no céu e as nuvens atrás
os ventos mudam-se ou mudaram
enfunam as vozes levantam-se
som dos chilreios
porque as primaveras se fazem na mão de quem se ouve
germinam da forma que pensa
poda-as o povo pelo gorjeio de sabedoria imensa

domingo, 11 de outubro de 2015

teus beijos de mulher doce
tão céu, de celestiais
têm corpo, sabem corporais
perfumados, de tão florais

teus beijos de mulher doce
são meus e não me pertencem
adoçam o melhor de mim

teus beijos de mulher doce
quero-os, não para os ter
são para me purificar

nevrose pessoana

i.
tenho um escrever compulsivo
não sei se
será o mesmo que escrever compulsivamente.
aquela foi a forma na condição de disparo
esta o modo como entendi — é um entendimento indistinto
não identifico a génese, só percebo o ulterior,
contudo, este teve uma origem, uma concepção —,
acontece-me este destempero,
tenho erupções que só depois interpreto
e nem sempre entendo;
são ambíguas ou têm ambiguidade?
terei um pensamento que se quer escrito e não pensado.
a consciência do pensamento adultera-o
e essa violência é-lhe insustentável
é-me compulsivo.

ii.
vou esforçar-me por caminhar, parto
rua abaixo dando frente para a água — pode ser
o mar — para que a rua seja rio;
é de calçada o leito prateado.
serei homem de água em meu barco, as roupas
que envergo, o leme é de incertezas que carrego,
a trajetória meu destino. já não caminho
ando, enfuno ao vento que quero de frente
no meu rosto quero sal
que me chegue aos lábios
que me salgue a alma e
que eu aprenda Portugal.

sossego sempre que posso
se me permito sair do imerso
se me abandono ao pensamento vago
se me solto em papel de esvoaçar
sobre tudo

sossego sempre que posso
alcançar-me, é arte que não domino
tenho algos que se arrastam
tenho outros que se adiantam
sobre tudo

sossego à tona da poço
ondeio no espelho profundo
sobretudo
drapeio sempre que posso
até inventar meu voo
desejo atravessar o mundo

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

em suspenso

i.
era assim
ainda hoje não tinha chovido
o gato ronronava preguiçoso tomando a janela
a luz chegava coada pelas nuvens
estas intumescidas pelo sol afiguravam-se poderosas
o livro parado na mesa baixa abria-se em páginas indecisas
a marca lá entalada manchara-se a amarelo de dedos e cumpria a sua função
o ar tinha mofo no aroma e
combinava com o desalinho do sofá
com o queimado surro do cortinado
das paredes em torno das molduras
dos quadros
dos retratos
com o empoeirado de véu sobre o tampo dos móveis
com o aveludado poeirento dos objetos
com o fechado morno-estafado da sala

as páginas não balançavam
permaneciam
posavam como monumento, quem sabe
congelando um momento, uma mensagem
poderiam simbolizar algo
o gato espreguiçou-se
havia harmonia
a personagem estava estática
o olhar era fixo, filtrado a baço engordurado de idade
em óculos grossos e tortos ajustados ao rosto cavado pelo tempo
o pensamento estava no momento, em suspenso
congelado algures

era assim
hoje não tinha chovido
nem ontem, mas ainda podia chover
o bichano seria rei da janela, sempre
ou da sala, se quisesse
ignoraria o poder do volume das nuvens
a proteção da vidraça
o bafio ambiente
as páginas permaneceriam até à corrente de ar
fosse nascida entre a porta e a janela
ou criada pelo movimento

ii.
então
como as páginas
talvez a cortina se agite
um pouco de bafiento saindo da sala e outro ar entrará
o pó desinquietar-se-á do seu estado
ora véu ora aveludado
o sofá manter-se-á em desalinho
o sol continuará enchendo
as nuvens
as janelas
os olhos
os objetos
aquecendo do morno ao esquentar
talvez a personagem esperte
ajeite os óculos
tome o livro
olhe em volta
o gato estacando o ronronar seduzirá para confirmar a janela
sabendo de intuição que não reinará na sala
ainda não choveu mas poderá acontecer

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

aparência

as manhãs poderiam ser-me uma onda
e submergir-me
por vezes sinto-as quase isso...
mas não. são-me metade de uma manta
a outra metade é a tarde
e na outra face está a noite.
o dia é a manta completa
sendo a noite que roça no corpo
o aconchega e conforta
ou estremunha.
o dia envolve sem ser onda.

que horror
esta erosão que me vai por dentro
rói, raspa, desgasta, tritura, fura e
sei lá que mais fará

dá-me a tua mão para pernoitar
conforta meu sono
acalma o ardor que me corrói
desde dentro preciso de uma noite para dormir

diálogo

entre a personagem e a sombra:

– o soslaio do olhar enfraquece quem o usa
– o silêncio pesa quando é mudo
– o nervoso do riso disfarça o embaraço
– o silêncio do choro alimenta-se da mágoa
– o volume da gargalhada afasta o agoiro
– rir é o remédio: interrompe o silêncio e liberta-o do incómodo
– o olhar é a mais silenciosa das armas
– e das fugas...
– e a melhor benesse
– das benesses escolho o sorriso
– o sorriso canta-o o Eugénio
– ...