sexta-feira, 30 de maio de 2014

sobre sonhos

Sonho,
é somente uma parte do real
que aparentemente podemos modelar a gosto; e gostamos.
Então sonhamos
e o acontecer aproxima-se e nós abeiramo-nos dele,
e neste processo frenético de construção e desejo,
a extravagância convive com a utopia
e a desventura com a perseverança.
A este convívio ocorre retirarmos os afetos,
para não sentirmos a dor da perda e o desconforto da frustração;
então resulta a realidade,
sempre acética pela inevitabilidade: o ser/estar "sem tus nem mus".

Normalmente
tendemos a esquecer que sempre corremos por algo que ainda não aconteceu
e que damos por tão certo
que não lhe reconhecemos o devir próprio do sonho:
é a nossa impossibilidade de sair do imediato,
de nos projetarmos um pouco além daqui. E chamamos real
ao que ainda não aconteceu.
O tempo, o espaço e o sonho são curtos; têm a nossa perspetiva
de vida, que se recusa sonhar, que recusa o desconforto:
instala-se a incapacidade de arriscar.

Que arriscar implica uma perspetiva de futuro que só sonho tem.

desperspetiva

há algo em mim, sempre o soube,
que flui como as flores; não é perfume.
é verde rente ao chão; onde brota vida
que me refresca os pés; e me desprotege,
ao contrário dos sapatos,
e me revigoro, fresco, de flor

da terra regressa o eco das raízes
que a seu modo são flores nascidas terra adentro
aí suportam e alimentam as raízes viçosas
baloiçantes ao vento e, porque ganham cor, são flor

que pés desprotegidos ganham perspetiva

pó dos dias

porque só tinha uma vida
vivia-a avidamente,
sentenciava-se

os pássaros sabiam que não era vida
era só o frenesim
que levantava dos dias

que se sacode, na muda de roupa
que fica lá fora ao fecho da porta
que, como o pó, se espana à janela

quinta-feira, 29 de maio de 2014

estados d'água

gota a gota pequenina
cresceste e correste até mim
enxurrada. assustas-me mais
que o escuro da noite
que te brotou
isolas-me
invades-me
pequenina como sempre
cavalgas tudo
das ondas que te fizeste

aprendi a amar-te
lembras-te que éramos companheiros?
todas as estações
eu de dentro aguardava-te
tu de fora divertias-te
no meio nosso, a janela
nela te projetavas, corrias e escorrias
mostravas-me o mundo ao contrário
nas gotas que eras tu
trocávamos segredos de amigos
secretos...
uma vez menti-te e tu descobriste
zangada, fizeste-te enxurrada
e com ela levaste-me a serenidade
de confiar incondicionalmente em ti
não percebeste que eu folgara
amigos, por vezes, enganam-se por diversão pura
assustaste-me
e continuaste minha amiga muito querida
intolerante a brincadeiras

hoje afloras o meu medo
não te sorrio
temo que me leves algo importante
temo-te, achando que já me perdoaste
mas chegas-me suja sem o cristalino
que teu brilho tem
corres barulhenta de folia ou de raiva?
não sei
tu corres e eu temo-te
sou eu quem não te perdoará

abandono

olho(-te)
pela janela encaro o escuro
invade-me essa luz de farol de carro velho
tudo em mim é velho como eu e a roupa que visto
e a janela que assomo à luz desse farol
e o escuro, da noite que surge sem ser aguardada
mas chega e olho-o nos olhos que não tem
só isso!... e acerca-se velho
como o meu rosto.

há um cão que me olha nos olhos
tomei-o por meu amigo
contemplou-me
que saudades de um olhar, eu tinha...
urinou no muro e partiu; poderei censurá-lo
se lhe devo o olhar que trocou comigo?

chamam-me louco
desculpam-me por ser quem sou
quando sou só solitário e velho
sem o direito a existir ancião
a idade mo nega, os olhos de outrem também.
meus dias perderam a nobreza
de merecer um olhar, procuro-o
à janela, na escuridão
no farol de um carro
na atenção de um cão.

a forja

o fogo
arde em letras
crepitam desconhecidas
sonâncias vagas e longas
palavras fundentes
o tempo as curará
ditos e não ditos
tudo será
tudo fará
sentido

a voz

canto onde o corpo acaba
canto o som perpétuo dos ecos da alma
infinitos
canto o que a voz não pronuncia
canto os silêncios das palavras grandes
cheias
canto o que não entendo e que me é familiar
canto o que ecoa em mim
de todos os cantos que tenho

entre linhas

todas as frases são uma continuação
como a vida...
mudar de linha é continuar a ideia - digo vida - noutra linha
isto acontece porque os cadernos são finitos
e porque os poetas são seres inconstantes
e mudam de linha sem critério quantificável
escrevem frases pequenas
outras grandes
a que apelidam de versos - versejam.
a mim soam-me a cantos - pensamentos trauteados
que uns nomeiam poemas e poesia
que outros chamam tretas
eu sempre fui de tretas - que o resto me entedia
redijo-as em minúsculas
neste estado - eu e as letras - desrespeitamos as regras
e crescemos em todas as linhas
ou pensamos que sim
que é outra linha de crescer

segunda-feira, 26 de maio de 2014

quando nada houver para dar
estendam-se os braços, entregues ao vento
os pássaros entenderão e pousarão neles
agradecem-nos o que temos para doar
a herança das árvores

domingo, 25 de maio de 2014

voos de cegonha

voo fluente de asas amplas
agita, a cegonha em sossego
bicos no regresso ao ninho
onde olhos aguardam olhos

terça-feira, 20 de maio de 2014

melancolia

bebe-se a melancolia
pequenos goles, saboreando
doce-amargo seco nos lábios
arrasta-se na garganta
baldeia-se no peito
em estado inquietude

bebe-se na paisagem
que desliza devagar
arrasta-se peganhosa
em olhares fundeados
o amargo do sabor
tem um doce enganador

romper do outono

escrever é a minha mudez
o meu de-mim-para-mim
o meu interior - reboliço
sou todo folhas de outono em vento outonal
rodopiam, levantam, rodopiam e caem
perto - sempre juntas - indiferentes
como uma mão ignora a outra
na certeza da presença - pertença mútua
minha alma e meu corpo pertencem-se - em mim
se ignoram.

minha alma emudeceu
eu também...

sempre outonos
laureio-me entre outonos
todas as cores me levam ao outono
nele rimo terra de pó com fruto
versejo vento com poente
concordo morno com sossego
e escrevo - emudeço - de-mim-para-mim

minha alma preguiça num outono
que de mim rompeu

segunda-feira, 19 de maio de 2014

sina

não me fiz por minhas mãos
não pude, por isso morro
crucifico-me nas linhas
retorcidas e teimosas
morro todas as vezes que tento
nasço a cada letra fundida no imaterial
de que se faz a escrita
se minhas mãos me fizessem
seria um linha ondulante
eternamente, sem retas nem vértices

ambição

aguardei na flor do dia
pensei em primaveras
mas não era disso que se tratava
era de flores

queria o dia a vogar, sereno
mas os pássaros inquietos
desinquietavam-me
e não era primavera

um trevo acenou-me
e ancorou meu olhar
de cobiça
eu desejava a primavera

eu queria escrever
e não havia palavras
inventei um olhar
procurando a primavera

meu olhar me disse
que eu não sabia
escrever
perdera a primavera

guardei a flor do dia
era de flores que se tratava
nunca fora de primavera

tempestade de verão

o céu vinha de longe carregado
despejou-se estrondosamente longo e quebrou-se em relâmpagos
o rio - em corpo de dragão - aproveitou para cintilar salpicos
que a chuva encontrou em múltiplos círculos concêntricos
minha janela gostou; sabia que era verão e desempoeirou-se
iluminou-se perfeita de tranças ao vento, descortinada
elevou-se e quis-se bela
pintou-se rio, longo de dragão com nuvens carregadas nas asas
serpenteando ventos, clarões e estrondos
e um campanário, brincando

declaro

minha poesia é enteada
eu sou o padrasto, e de má rês
odeio-a!
de tão falha que a vejo
de tão imprópria de existir
deserdo-a do título de poesia
coloco-a abaixo de nota de merceeiro
que é só uma conta de somar
cada poema é um enguiço
só isso

meu lugar é lá
entre o sol e o mar
nascente, poema
poente, criação
do fundo do peito
respiro sal
húmido de espuma
a voz é do mar
a rima da gaivota
a métrica do peito
a alma - poema - pulsa espontânea
nascente, poente
entre o sol e o mar
o meu lugar

domingo, 18 de maio de 2014

entre

entre poetas
decifram-se, entre aspas
entendem-se, entre parênteses
respira-se, entre vírgulas
violetas, nascidas em versos

- entre, entre!
que entrem
que entre a fantasia!
entre olhares
entre dedos
entre lábios
entre dentes
entre tantos
entre nós
da poesia

sexta-feira, 16 de maio de 2014

sonhos, princesas e reis

- meu sonho era amar-te, dizia o príncipe
- e porque não me amas? - perguntou a princesa
- é que nunca estás em meu sonho, nele nem te conheço

- com que sonhas tu? – sonhava-se ela
com ousadia questionar o príncipe
e ainda sonhava a resposta, pelo príncipe:
- sonho com meu reino de terra e de povo
sonho que reinarei com sabedoria
sonho que serei rei de todos, para todos
sonho que reinando servirei
sonho que servindo reinarei
sonho com um reino de reis
sonho que os reis do meu reino servirão reinando
sonho que saberei jardinar este reino

e sonhava, a princesa, com a demanda
- e como esperas tu reinar um jardim
se não conheces as plantas?
se não lhes sonhas as flores
se não sonhas como se engalanarão à tua passagem
porque te entendem borboleta
te sentem a abelha que as fará reproduzirem-se
sementes que darão novas flores?
como entenderás teus reis
se não lhes conheceres os sonhos com as rainhas
se não souberes os filhos que sonharam
e os que enjeitaram?
como esperas entender porque as flores são colorias
tal como as borboletas ou as vestes  que usas?
não adornas tu, as janelas do teu castelo
quando sonhas em festa?
como queres reinar em natureza
se não sonhas amar,
amar e sonhar, sonhar um filho
como sonham todos os que queres sejam reis em teu reino?

sonhou quem nunca ousou perguntar,
a princesa sem lugar nos sonhos do príncipe.
como as princesas, de amor só ousam sonhar
que seu destino é um reino
conquistado à força de pesadelos
que dão corpo ao sonho de um reinado.

pelo sonho se adultera a vida
se falta a ousadia de o sonhar
e de o crescer

quarta-feira, 14 de maio de 2014

vertigens

no fundo
onde o horizonte se descobre
o sol
inclui-se entre duas montanhas
pousa nelas
entende-se até nós
sinto que me beijas assim

não me perguntes porque o sinto
não me perguntes porque o digo
são palavras que me saem
como pássaros que saltam do ninho
algumas fazem-me vertigens
como é possível senti-las assim?

não sei
mas sinto a vertigem do beijo
e sem palavras
os raios de sol estão lá
vejo-os
quando fecho os olhos

sobre poemas

engana-se quem vê no poema a palavra
a palavra é a limitação do poema

o poema é uma enfiada de afetos
unindo duas fantasias
o ápice
um ápice a cada instante
quando as visões se cruzam

névoas

pairam desertos dos sentidos
de quem já não sente
dos sentimentos sem sentido

pairam palavras-calhau
indiferenças
espalhadas na rua

pairam restaurações
horrores
que nos envergonharão

corpo e alma

nas veias circulam-me sonhos
batidos a peito.

as mãos tocam leves - digo,
sonhos - corpo pairando
na ternura de uma mão, tua.

instantes

por vezes escrevo fogo
ardor da alma aos dedos
fogueiam-me os pensamentos;
outras, escrevo gelo 
estalactite
aprumadamente perfurante;
há momentos que escrevo pedra
contundente 
firo as veredas a talho de golpes duros;
tem dias que escrevo sangue
a dor dorida
ora jorrando, ora correndo, paixão;
há horas que escrevo luz
relampejo nas trevas
ou sol no caminho;
de todas as vezes
por segundos escrevo-me
ápices da escrita que estoura
em mim, transcursos que me içam
e gero-me poema em folha de papel
quando não caibo no mundo
quando não me contenho em mim

segunda-feira, 12 de maio de 2014

sobre mar, sobre solidão

o mar acoitou-se
em nós
o tínhamos por grandioso
a solidão impregnou-se-lhe nas ondas
o desespero estronda-se na escarpa
fere-se nas frestas
que as rochas - magníficas -
oferecem
impávidas solidárias
que solidão é profunda
é neblina, encobre o mar
só o acoito de colo a esfuma

quinta-feira, 8 de maio de 2014

avessei-me

inversei-me
fiquei o avesso de mim mesmo
as entranhas retesaram-se
gélidas; asperaram-se
ressequidas
fiquei esta coisa hirta
esventrada, fora de mim
de humores ácidos
era a bílis

quarta-feira, 7 de maio de 2014

ama-me
meu olhar te procurará
na flor do monte
colina ao sol
inclinando a manhã
onde acordas
e esvoaçam teus olhos
logo estendo meu olhar
que tenham onde poisar
ama-me

a oriente

a oriente nascem as cores
delas se desprendem os aromas
doces, intensos fulgurantes
como as cores, divinas de sensualidade

a oriente montam-se arcos-íris
que se enleiam na terra
atam em fertilidade a chuva e o sol

a oriente, as almas respiram
o espírito é sempre solene
a oriente a cultura desabrocha da terra

chá de jasmim

era erma a madrugada, sem vislumbre
o chá era de jasmim e despertava, aromas
que houvera nas ruas, em tendas vendilhonas
perfiladas, ousadas de cores e adereços, e disponíveis
tanta simpatia...

este longo gole de chá de jasmim

- é bom para acalmar, só o aroma, então se o tomar...
vem do oriente...
um dito envolto na doçura de um sorriso
em voz meiga de mãe
e os olhos queriam-me bem

como não comprar?

sorrio-lhe deste ermo. continua pérola
sentada ou aninhada no fundo duma tenda vendilhona
olhando-me um chá de jasmim do oriente
para acalmar...
quando o vislumbre é ermo e a madrugada demora

terça-feira, 6 de maio de 2014

lugar de ser

porque sou água corrente
flutuavas em mim
minha folha de outono. coloriste-me
o leito, agradecida. a cor era tua
e ficamos nós
porção de rio, parte de árvore
vida corrente

o sol fitou-nos
até dobrar a colina

o firmamento nasceu regato
queriam as estrelas vogar
seriam folhas de outono

domingo, 4 de maio de 2014

entardecer

havia tudo
colinas, sol rasante
cantos de pássaros, sons de grilos
brisa fresca
e o entardecer
por eles chegara o prazer
de ali estar
ser um deles
sermos nós o entardecer

desconhecido

quando o corpo deixou de responder
relaxou
aceitou o facto
partiu! e só podia partir
sentia que ali já não pertencia
fora um momento acabado
esperava-o presente desconhecido
estava ali, sentia-lhe o bafo
também ele estranhamente desconhecido.
começou por atravessar a rua
era bom o outro lado
via ao longe aquele magote de gente
em torno do inerte
persistem
acreditam que persistir é uma qualidade
e era-o, mas fora-o, agora não parecia que fosse
neste desconhecido.

deixou o magote e procurou um sinal
desconhecido
viajou dias infinitos; dias sem fim;
dias que já não eram dias, quando o tempo não interessa
dias infinitamente dias
o desconhecido tem esta dimensão de infinitude
o desconhecido mostra-se concreto infinito
estado sem expectância e sem esperado
no desconhecido não há companhia
não há solidão
não há persistência; nem se desiste
acima de tudo não há consciência

no desconhecido os sentidos não fazem sentido
não se apreende pelos sentidos
ficaram pra trás naquele corpo que despojado num lado de uma rua
é infinito como o conhecimento
mas sem razão de ordem proporcional inversa
não há relações de proporção entre ambos
não há relações entre ambos
um é conhecimento
o outro é desconhecido
o erro sempre foi interpretar-le o desconhecido pelo que se conhece
erro metodológico crasso
por ele alimentam-se medos até aos terrores
do inesperado, da ausência, de tudo, até de expectativas

compreende-se o que fizeram os navegadores portugueses
entraram numa nau que fizeram
navegaram num rio e num bocado de mar que conheciam
de seguida ei-los no desconhecido e não voltaram para trás.
voltar era impossível
como agora que também não quero
move-nos para a frente algo desconhecido
o desconhecido move-nos para o desconhecido
mergulhamos nele, nadamos nele, submergimos nele
como peixes - que nadam - como aves - que voam
como minhocas - no interior da terra
mas não como homens animais de superfície terrestre
superficiais, desabituados a mergulhar logo após o nascimento
por ele nos condenamos ao conhecimento superficial
o mais multidimensional possível
mas tão enganador... será?

meu vizinho todos os dias comprava os jornal e nele lia algo acidentalmente
porém, como se fosse um culto lia diariamente os números de vários sorteios
embora nunca jogasse e condenasse o gesto
"uma forma de alimentar bandidos e preguiçosos"
a razão pela qual via ele os números faz parte do desconhecido
é o desconhecido
nunca a revelou, nem ele a sabia
encolhidos os ombros e murmurava que um homem tem de ter algum vício
fazia isto desde novo
e era algo verdadeiramente do domínio do desconhecido

claro que podemos usar o nosso conhecimento e explicar este desconhecido
podemos até encontrar um apetitoso trauma
que verdadeiramente nunca saberemos se existe
nem se a propriedade do trauma será mais dele ou nossa
podemos chamar-lhe maluco; uma das nossas formas de lidar com o desconhecido
é-nos insuportável o desconhecido
não combina com a natureza dos nossos sentidos
que existem para nos tornar conhecida informação
conhecimento que nos torne confortáveis

conheço pessoas que adoram surpresas
conheço quem as deteste
mas toda a gente tem medo de morrer
pânico de morrer, porquê?
suponho eu que seja pelo desconhecido

e eu montado numa semente dente-de-leão, percorro
disserto sobre desconhecido soer da morte
a dente-de-leão ignora-me
ela que partiu um dia e aceitou ser levada pelos caprichos vários
do tempo, do vento, dos acontecimentos ou do que quer que fosse
agora ignora-me
lembra-me que estou no reino do desconhecido
tudo o que conhecia era estar em meio de desconhecidos
estar no desconhecido é-me desconhecido
profundamente desconhecido.

tomei o meu lugar
relaxei o corpo e deixei-me ir
até ao outro lado da rua onde se iniciava o desconhecido.

o desconhecido é próprio de quem não ousa
também na morte é preciso ser ousado
é preciso ousar para que se morrer com dignidade
porque não há outra forma de enfrentar o desconhecido
ou de o afrontar
é possível o encolhimento...
a posição fetal e esperar que tudo passe
aprendemo-lo no ventre de nossa mãe
porém, agora não estamos envoltos em liquido amniótico
e nascer é mais desencolher
é esticar, encher o peito de ar, respirar e entrar no desconhecido

ponto de inserção

tinha uma história que não sabia como começar.
há histórias assim, não lineares, de início indefinível:
intrometeu-se um pensamento e aventou um circulares tão convicto...
e vi-me a orbitar a história para entrar nela
gostei da metáfora... um ponto se inserção
entrei!
na felicidade de quem acabava de ler no diário os números do sorteio do totoloto
procurava-os sempre, chegava a decorar a chave sorteada
nunca jogara
nunca jogaria
satisfazia-se pensando no dinheiro que poupara
satisfazia-se criticando "quem não sabia que fazer ao dinheiro"
o seu zénite: glorificava o seu estilo de vida
poupar
não arriscar
construir a idiotice de outrem para se autovalorizar
menosprezava os ganhadores: só recebiam a dízima do que lá meteram
a tragédia deste homem...

a tragédia deste homem era não rir, nunca rira.
um sorriso era o máximo que conseguia;
aprendera com uma foto antiga,
altiva, a personagem, enchia a foto,
transvazava da moldura e espalhava-se pela sala
tão distante, o avô, eterno chefe de família, morrera há anos
e sempre fora venerado, até na ausência.
um dia ouviu, ou pareceu-lhe ouvir, um "é todo avô!"
assumiu-se o exemplo, assumiu encher a sala com a sua presença
iniciou pelo sorriso que copiou por horas ao espelho
usava-o indiferentemente para rir e para sorrir
claro que distinguia entre rir e sorrir
a indiferença que sentia estava nos motivos

num outro ponto da história saboreávamos
(eu e ele) uma nata, apoiados ao balcão e olhar pregado na delícia
entre duas bocadas grunhi sobre a qualidade do pastel
"já comi melhor", vociferou, para que staff ouvisse
e só comia aquele bolo por ser o melhor que tinham.
terminado o repasto resvalou-me uma confissão entre-dentes
"não podemos gabá-los muito senão estragam-se; já vi muitos assim"

estranho modo de zelar pela pastelaria
paternal; também aqui se queria reconhecido
talvez um dia
haja quem veja por cima do azedume.
há sempre alguém que vê além com o olhar que a alma lhe deu.

maturez

indecifrável este ato
soa a auto-flagelação
matraquilhar no teclado
rodar a caneta nos dedos
forçar a saída do que ainda não está pronto
dores de parto antecipadas
um longo parto
(sente-se)
cheio de contrações
(mentais)
ilustram o indescritível
o que ainda não foi decifrado.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

insubstantivo

meus poemas de amor já não amam
meus poemas de amor não ardem
não poemam
meus poemas de amor são desertos
as flores são pintadas
e secam antes de crescerem
meus poemas de amor
rimam mas não rumam
têm métrica mas não pulsam
meus poemas de amor já não o são
nem poemas, nem de amor

momento

não se esgota o perfume da flor
seio em curva, emanante
não se apaga o raio de sol
que ilumina a fonte

onde a água corre pura
apaziguo a sede, minha
colho o brilho de teus olhos
que se iluminam de dentro
búzios inspirados de mar

o que se ouve
um troar longínquo
de calmaria