domingo, 4 de maio de 2014

desconhecido

quando o corpo deixou de responder
relaxou
aceitou o facto
partiu! e só podia partir
sentia que ali já não pertencia
fora um momento acabado
esperava-o presente desconhecido
estava ali, sentia-lhe o bafo
também ele estranhamente desconhecido.
começou por atravessar a rua
era bom o outro lado
via ao longe aquele magote de gente
em torno do inerte
persistem
acreditam que persistir é uma qualidade
e era-o, mas fora-o, agora não parecia que fosse
neste desconhecido.

deixou o magote e procurou um sinal
desconhecido
viajou dias infinitos; dias sem fim;
dias que já não eram dias, quando o tempo não interessa
dias infinitamente dias
o desconhecido tem esta dimensão de infinitude
o desconhecido mostra-se concreto infinito
estado sem expectância e sem esperado
no desconhecido não há companhia
não há solidão
não há persistência; nem se desiste
acima de tudo não há consciência

no desconhecido os sentidos não fazem sentido
não se apreende pelos sentidos
ficaram pra trás naquele corpo que despojado num lado de uma rua
é infinito como o conhecimento
mas sem razão de ordem proporcional inversa
não há relações de proporção entre ambos
não há relações entre ambos
um é conhecimento
o outro é desconhecido
o erro sempre foi interpretar-le o desconhecido pelo que se conhece
erro metodológico crasso
por ele alimentam-se medos até aos terrores
do inesperado, da ausência, de tudo, até de expectativas

compreende-se o que fizeram os navegadores portugueses
entraram numa nau que fizeram
navegaram num rio e num bocado de mar que conheciam
de seguida ei-los no desconhecido e não voltaram para trás.
voltar era impossível
como agora que também não quero
move-nos para a frente algo desconhecido
o desconhecido move-nos para o desconhecido
mergulhamos nele, nadamos nele, submergimos nele
como peixes - que nadam - como aves - que voam
como minhocas - no interior da terra
mas não como homens animais de superfície terrestre
superficiais, desabituados a mergulhar logo após o nascimento
por ele nos condenamos ao conhecimento superficial
o mais multidimensional possível
mas tão enganador... será?

meu vizinho todos os dias comprava os jornal e nele lia algo acidentalmente
porém, como se fosse um culto lia diariamente os números de vários sorteios
embora nunca jogasse e condenasse o gesto
"uma forma de alimentar bandidos e preguiçosos"
a razão pela qual via ele os números faz parte do desconhecido
é o desconhecido
nunca a revelou, nem ele a sabia
encolhidos os ombros e murmurava que um homem tem de ter algum vício
fazia isto desde novo
e era algo verdadeiramente do domínio do desconhecido

claro que podemos usar o nosso conhecimento e explicar este desconhecido
podemos até encontrar um apetitoso trauma
que verdadeiramente nunca saberemos se existe
nem se a propriedade do trauma será mais dele ou nossa
podemos chamar-lhe maluco; uma das nossas formas de lidar com o desconhecido
é-nos insuportável o desconhecido
não combina com a natureza dos nossos sentidos
que existem para nos tornar conhecida informação
conhecimento que nos torne confortáveis

conheço pessoas que adoram surpresas
conheço quem as deteste
mas toda a gente tem medo de morrer
pânico de morrer, porquê?
suponho eu que seja pelo desconhecido

e eu montado numa semente dente-de-leão, percorro
disserto sobre desconhecido soer da morte
a dente-de-leão ignora-me
ela que partiu um dia e aceitou ser levada pelos caprichos vários
do tempo, do vento, dos acontecimentos ou do que quer que fosse
agora ignora-me
lembra-me que estou no reino do desconhecido
tudo o que conhecia era estar em meio de desconhecidos
estar no desconhecido é-me desconhecido
profundamente desconhecido.

tomei o meu lugar
relaxei o corpo e deixei-me ir
até ao outro lado da rua onde se iniciava o desconhecido.

o desconhecido é próprio de quem não ousa
também na morte é preciso ser ousado
é preciso ousar para que se morrer com dignidade
porque não há outra forma de enfrentar o desconhecido
ou de o afrontar
é possível o encolhimento...
a posição fetal e esperar que tudo passe
aprendemo-lo no ventre de nossa mãe
porém, agora não estamos envoltos em liquido amniótico
e nascer é mais desencolher
é esticar, encher o peito de ar, respirar e entrar no desconhecido

Sem comentários:

Enviar um comentário