domingo, 4 de maio de 2014

ponto de inserção

tinha uma história que não sabia como começar.
há histórias assim, não lineares, de início indefinível:
intrometeu-se um pensamento e aventou um circulares tão convicto...
e vi-me a orbitar a história para entrar nela
gostei da metáfora... um ponto se inserção
entrei!
na felicidade de quem acabava de ler no diário os números do sorteio do totoloto
procurava-os sempre, chegava a decorar a chave sorteada
nunca jogara
nunca jogaria
satisfazia-se pensando no dinheiro que poupara
satisfazia-se criticando "quem não sabia que fazer ao dinheiro"
o seu zénite: glorificava o seu estilo de vida
poupar
não arriscar
construir a idiotice de outrem para se autovalorizar
menosprezava os ganhadores: só recebiam a dízima do que lá meteram
a tragédia deste homem...

a tragédia deste homem era não rir, nunca rira.
um sorriso era o máximo que conseguia;
aprendera com uma foto antiga,
altiva, a personagem, enchia a foto,
transvazava da moldura e espalhava-se pela sala
tão distante, o avô, eterno chefe de família, morrera há anos
e sempre fora venerado, até na ausência.
um dia ouviu, ou pareceu-lhe ouvir, um "é todo avô!"
assumiu-se o exemplo, assumiu encher a sala com a sua presença
iniciou pelo sorriso que copiou por horas ao espelho
usava-o indiferentemente para rir e para sorrir
claro que distinguia entre rir e sorrir
a indiferença que sentia estava nos motivos

num outro ponto da história saboreávamos
(eu e ele) uma nata, apoiados ao balcão e olhar pregado na delícia
entre duas bocadas grunhi sobre a qualidade do pastel
"já comi melhor", vociferou, para que staff ouvisse
e só comia aquele bolo por ser o melhor que tinham.
terminado o repasto resvalou-me uma confissão entre-dentes
"não podemos gabá-los muito senão estragam-se; já vi muitos assim"

estranho modo de zelar pela pastelaria
paternal; também aqui se queria reconhecido
talvez um dia
haja quem veja por cima do azedume.
há sempre alguém que vê além com o olhar que a alma lhe deu.

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