sexta-feira, 9 de outubro de 2015

em suspenso

i.
era assim
ainda hoje não tinha chovido
o gato ronronava preguiçoso tomando a janela
a luz chegava coada pelas nuvens
estas intumescidas pelo sol afiguravam-se poderosas
o livro parado na mesa baixa abria-se em páginas indecisas
a marca lá entalada manchara-se a amarelo de dedos e cumpria a sua função
o ar tinha mofo no aroma e
combinava com o desalinho do sofá
com o queimado surro do cortinado
das paredes em torno das molduras
dos quadros
dos retratos
com o empoeirado de véu sobre o tampo dos móveis
com o aveludado poeirento dos objetos
com o fechado morno-estafado da sala

as páginas não balançavam
permaneciam
posavam como monumento, quem sabe
congelando um momento, uma mensagem
poderiam simbolizar algo
o gato espreguiçou-se
havia harmonia
a personagem estava estática
o olhar era fixo, filtrado a baço engordurado de idade
em óculos grossos e tortos ajustados ao rosto cavado pelo tempo
o pensamento estava no momento, em suspenso
congelado algures

era assim
hoje não tinha chovido
nem ontem, mas ainda podia chover
o bichano seria rei da janela, sempre
ou da sala, se quisesse
ignoraria o poder do volume das nuvens
a proteção da vidraça
o bafio ambiente
as páginas permaneceriam até à corrente de ar
fosse nascida entre a porta e a janela
ou criada pelo movimento

ii.
então
como as páginas
talvez a cortina se agite
um pouco de bafiento saindo da sala e outro ar entrará
o pó desinquietar-se-á do seu estado
ora véu ora aveludado
o sofá manter-se-á em desalinho
o sol continuará enchendo
as nuvens
as janelas
os olhos
os objetos
aquecendo do morno ao esquentar
talvez a personagem esperte
ajeite os óculos
tome o livro
olhe em volta
o gato estacando o ronronar seduzirá para confirmar a janela
sabendo de intuição que não reinará na sala
ainda não choveu mas poderá acontecer

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