sábado, 14 de setembro de 2013

um pensamento escrito

mãe,

chego com um sorriso, sem pedido de perdão, sem declaração de amor e muito menos uma exposição de admiração. tudo o que tenho é um texto escrito ao ritmo do pensamento: um pensamento escrito para ti. não conheço nada mais espontâneo. não conheço nada mais bonito, nem nada que deseje mais para ti e para mim.

noto que te escrevo por "tu" embora te fale por "você", sem que use o termo que me ensinaste ser de tão má educação que o guardei na gaveta dos impropérios. terei ficado unilateralmente íntimo de ti e noto como tu sempre foste unilateralmente íntima de mim. neste pensamento seremos "tu e eu" ou "eu e tu" e o teu olhar angustiado dará lugar à expressão de marota cumplicidade ternamente feliz que tens para mim. nesse momento as dores passam-te, a idade desaparece-te e transformas-te numa espécie leve de bobo para me mostrares que brincar é bom e desejável, desde que as intenções sejam boas — a vírgula é tua e enfaticamente colocada e acentuada por ti.

isso, as intenções: o que pensamos, o que desejamos, a pureza no estarmos seja onde for. sabes que cada vez estou mais assim? e sorris de vaidade; não murmuras o valeu a pena porque pensas no consegui. é por isso que sorrio e sorrio na escrita destas palavras ainda não rasuradas nem revistas, nem na pontuação: espelham o espontâneo que tanto gostas. é mais natural, elogiarias e eu ouviria e sorriria; teria piada. hoje, entre ouvidos e sorrisos, faz-me todo o sentido.

mãe! tenho pensado na morte, não tanto pelo medo que tenha de morrer, mas é o meu medo que tu morras. engraçado, é que venho preparando a tua morte desde os meus 10 anos, talvez antes, ou um pouco depois, e embora sereno, ainda não estou preparado. é altura de me sorrires um burro velho não aprende línguas, e é verdade. também me dirás que todos morrem e só deus sabe como e quando, a que eu acrescento na sua infinita sabedoria, no meu mais silencioso sarcástico. tu, que não tens o ressentimento que eu sinto, sei que se ouvisses, os teus olhos, primeiro ficariam vagos e oblíquos ao chão, para depois se cravarem nos meus e golpearias o teu graças a deus muitas, graças com deus poucas e eu respeitar-te-ia impotentemente, sabendo que no fundo até a morte é natural.

sabes que houve tempos em que só tinha medo da minha morte? e tu rezavas, quase sempre com prazer, parecias e dizias-te pronta para o céu, ao passo que eu detestava rezar, saía-me algo mecânico como a tabuada;  sei que falo mas nunca sei o que digo e tenho de pensar nas palavras que acabei de proferir para lhes encontrar significado e nem sempre chego lá. hoje escrevo poemas e gosto de trocadilhos entre poemas e orações, entre rezas de declamações; o deus ganhou poesia, eu fiquei mais sereno. e tu manténs o mesmo olhar sobre mim, com que me fazes sentir ungido: e tu sabes que eu gosto e eu delicio-me com o prazer que colhes do meu gosto. mães e filhos são assim: impenetravelmente juntos.

já nos confessámos que o tempo urge: os nossos encontros serão menos, decrescentemente menos, e tornámo-los mais intensos; têm mais abraços, têm mais carinhos, mais toques, mais olhares cruzados. têm mais marotices, como quando eu tinha 5 anos e era assumidamente menino, sem saber como carinho de mãe faz crescer.

sei que ficarei magoado quando morreres, mas sei também que terás um beijo para me confortares, daqueles com que me curaste de tantas quedas e eu talvez consiga escrever-te um poema.

o meu sorriso mãe.

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