sexta-feira, 21 de agosto de 2015

quando em teus braços me tomaste
o rosto de encontro ao peito teu
demorado beijei-to
queríamos sentires sem palavras

ela é ela em desejo de ser a mãe
tu a vontade de ser pai e avó 
ainda a outra avó, numa pessoa só 

verde

tingiu-se de verde
o verde do teu olhar
tão verde, sinto-me
navegar em mar verde olhar

terça-feira, 18 de agosto de 2015

a  terra ser-te-á
grande debaixo dos pés, sempre
nunca a calçarás
ainda que enterres teus pés
que tos aconchegue
a terra ser-te-á infinitude
e a beleza que lhe vires será tua

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

quando as nuvens baixam
roçam na terra como nevoeiro
não fossem elas ovelhas
repastando ao sabor do voo
as nuvens não andariam em rebanho
e os rebanhos não teriam nuvens

ao deitar-me naquela noite
a força que tive não teve lugar
nem para nascer nem para chegar

domingo, 16 de agosto de 2015

em paz

ao deitar-me naquela noite
percebera o dia, pequeno pleno
preenchido de tudos, de todos e de nadas

ao deitar-me naquela noite
sonhei novas palavras
e proferi-as como sonhos absolutos

um dia não haverá poemas para escrever
rescrever-se-ão, como cópias, os conhecidos
porque os números ignoram valores

o pássaro pica no chão
o chão meneia-se para o pássaro

jamais voaria, o chão,
não tivesse da ave o peso do voo

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

os voos são trajetos de aves
aprendidos com as borboletas
ensaiando ser flores saboreando o vento

os homens entregam-se pela flor
algo entre o florir e o voar

sobre luz e cor

de onde vem a luz que se apaga
no final a penumbra habita
no início tudo era luz
e tudo iluminou
e se iluminou

o destino apaga a flor
fecha a porta
esconde a estela
o braseiro acaba cinza
em estado antes da cor

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

as obras do ódio doem a toda a humanidade

escrever

por vezes o escrever é a eternidade
um estado de desejo emergente
da corrente de uma leitura, ou brota
da necessidade infame de narrar para si
soa a expor da entranha

por vezes o escrever é só uma ideia
um manso amadurecer
o escorrer simples da simplicidade

acontece-me o escrever ser
um aguardar inquieto
as tentativas do esboço
as rasuras imperfeitas

por vezes o escrever é condição
encalhado manobrando
desancorando a mensagem
sem trajeto nem destino

o escrever, se é descoberta, é
a arte de iludir pela descoberta

frescura na baixa

o vento da tarde traz
fresco colhido na estreitura
da rua, entra no beco
e não se deixa aprisionar
penetra o entreaberto
a porta a janela batem
atrás de si folia
e fúria num só momento

quebra-se a vidraça
tilinta a sorriso o vento

olhar

como te contarei o bem
de teus olhos sobre mim
de um inacabado de sem fim?

olhar

dos montes o olhar chama à leitura
da árvore à curvatura
do cume à inclinação da colina

dos vales o olhar é amplo
de enorme celestial

domingo, 2 de agosto de 2015

sobre mim
que se leiam as cartas de amor
as que me foram escritas
na forma como foram sonhadas

terça-feira, 28 de julho de 2015

o amor é-me a realidade mais bela e pelo sonho não a consigo alcançar.
sempre que sonhei o amor nunca me aproximei da realidade de amar e de sentir-me amado: é surpreendente demais para poder ser antecipado e a imaginação revela-se escassa.
amor desfruta-se; o que também é amar.

do degredo a carta

meu amor,
se eu desaparecer
não pode ser
não poderá ser
e não será

ser português

por vezes ataca-me uma ideia
no português há um mar
bem no centro de si mesmo
para onde confluem todos os rios
todas as veias e artérias
a correnteza pulsa
penso que nela o mar aprendeu a ondear

sexta-feira, 24 de julho de 2015

portugal 2014

de que farei sonhos
se as palavras que uso não gosto
são gastas hediondas

ágora preciso vestir-te
para me preencher

não vejo senão a água dos sonhos
nossos

não quero senão o mistério dos olhos
teus

não vivo senão o vício de ser
amante

e outras essências cristalinas em água
pura

morrer

ir sozinho
onde a solidão mora
é partir
caminhando só

quinta-feira, 23 de julho de 2015

corrente

há linhas que enleio em si mesmas
fossem ideias em redondo de letras
ou de seixos de rio, ora rebolam
ora se aquietam
no fundo sempre se arredondam
a mensagem corre e eles lá dentro
o marulhar fresco da poética
ouve-se, ouço-a

...
o silêncio em torno da rosa existe
e contém a melodia das pétalas

quarta-feira, 22 de julho de 2015

é esdrúxula
esta repartição do tempo
este suceder: vida em folhetins
que merda!, digo eu
que (tanto) odeio telenovelas

terça-feira, 21 de julho de 2015

biografia

nunca me suspeitei, eu mesmo
poeta de escrita vadia
um dizer de sentir
que é o meu sentido
vadio de nascença
domado de educação

anda a mim, andarilhou a calçada 
voarei p´ra ti, voou a ave

o homem sonha e acontece a vida 
o poeta rasura letras ao tecer borboletas

povo

no jardim onde as flores eram impedidas
de florir, aguardava-se que florisse o ar
jogaram-se, os coloridos, nos bancos de si vermelhos
os pássaros desabrocharam das árvores
florir era preciso
e floriu quando o todo quis

quinta-feira, 16 de julho de 2015

viver por algo é a maior dedicação
gastam-se todos os momentos de uma vida inteira
uma boa janela é sempre um lugar de perdição.
sei-o porque é lá que me encontro
...
nesta europa, como no céu,
os anjos recusam despojar-se das asas...

voar é um desígnio dos homens que sonham
sabe-se...

partiu para onde o lugar o faria feliz
amava a ideia de chegada
alimentavam-no as ânsias da partida
confortava-o o retorno como possibilidade
mas vida, vida mesmo era o movimento
e a felicidade descortinava-se além
longe ao alcance da vista

meu deus

gosto de um deus que se distrai
ou que se baralha
que se edita em formatos com sentido de humor
e concede os contrários

gosto de um deus com desfaçatez
desconcertante na ingenuidade
que a sabedoria tem
que a ignorância esconde

efémero

ainda a folha não tocara o chão
o outono já não estava para a aguardar

gostava que a aguardassem
aquela espécie de agrado que faz quem ama

o outono é precoce à chegada e na partida
pertence-lhe um morno doce pós-escaldante

é sereno amarelo-avermelhado de aconchego
antes do frio gelo cinza até ao branco alvo

na folha o mudar da cor
superlativa a perfeição da vida

e completa-se - a folha - pairando
esbanja-se a um voo de borboleta

segunda-feira, 13 de julho de 2015

auto-atrevimento

como todos
tinha para si próprio um desígnio
antes encobrira-o
um receio enorme em o definir
era o pavor de não o alcançar
definhava, engordando o medo

antes navegava
no ecrã uma vida sem sobressaltos
virtualmente debelava as ânsias

agora que o adamastor estava em si mesmo
fustigavam-no tempestades medonhas

no horizonte permanente
o que fora tormenta era boa esperança

sábado, 11 de julho de 2015

tenho tendência a circular no lado de fora
e nem sempre me sinto arejando

fechamento

encerraram-se as portas, ou foram encerradas
a escuridão sempre senhora
instalou-se arqueando o corpo
monumental, franqueando a luz.
as trevas surgiram-lhe debaixo do vestido
irrequietas devoradoras medonhas
insaciáveis, alimentam-se dos medos
que criam e crescem, umas e outros
gordos, frios, negros e sujos.
o que lhes reluz no corpo vem do íntimo
terrores que os tornam visíveis
aparecem no encerramento, de tudo
e das portas, atacam o que fica lá dentro.
também o inferno é um feito de homens.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

maternidade

no fruto do teu ventre descobriste
o mais, muito mais
encontraste a infinitude
sob a forma de amor crescente
o que tu cresceste além de ti
em teu seio a felicidade leva-te ao colo

ainda o movimento

solidariedade é uma onda
como o abandono e tudo o que é humano
como o mar que entendemos
como se fossemos nós mesmos

imaginação

há um sítio
onde a forma tem lugar
para acontecer
sem limites

domingo, 5 de julho de 2015

cor da escrita

o que se escreve das manhãs não chama o vento nem o faz
não gera o movimento entre as folhas e as flores e os pássaros 
dá-lhes significado que é uma espécie de colorido

sexta-feira, 3 de julho de 2015

sexta-feira, 26 de junho de 2015

quarta-feira, 24 de junho de 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

meu nascimento

sábado
4:00 da manhã e mais um pouco
ainda não nasci
crio-me no útero da noite
escrevo para distender o pensamento
exercito-me
mergulhado em recordações amnióticas
que me suspendem e alimentam
respiro
o ar vem-me da noite com umbilical desígnio
reteso-me numa ideia
procuro palavras que se distendam
quero exercitar-me para o nascimento
descreverei uma parábola
mortal encarpado à frente
projetar-me-ei até que a paisagem me receba
então será dia
a noite expulsa-me
o útero contrai-me os movimentos
pare-me um espécie de neurose noturna
e entrega-me dia fora

domingo, 21 de junho de 2015

o movimento

um gesto livre lançado ao ar
volume do corpo nu para o sol
uma folha solta livre vogar
lento branco enfunar de lençol

ainda um sonho que sonha pairar
ou uma praia drapeia ao vento
ou uma seara que sabe ser mar
eis as maravilhas no movimento

todas as vozes tingem a paisagem
estira-se a calçada envolta nos passos
e fica o colorido marcado no tempo

eu acredito em toda a passagem
em volume e cor, em linhas e laços 
e na força lenta do movimento 

contratempo

o tempo que me visitou
por mim passou gerundiando
em contratempo apressei-me
ele correu eu contra investi
quando tudo acalmou
encontrei-me assisando
o modo que vivi
como nem conta dei
do que por mim passou
e por onde eu passei

segunda-feira, 15 de junho de 2015

diário

a manhã, o despertar
todas as memórias são sonho
e todos os sonhos são um lugar próximo
perto de mais para ser autêntico
porém, distante, ao ser fantasiado
a luz ainda não é
os atos ainda não são
o dia ousa irromper

e urdir-se na teia do que não foi
acomodará os factos
sem ânsias, o que não era, será
e quando o for, estará planeado
ignorar-se-á o acontecer
excluir-se-á o erro - partícula
omnipresente do saber -
o modo humano de aprender

chegarei ao final do dia
aguardarei o início da manhã
acolher-me-ei no colo da noite
em amor tenro e largo
purificar-me-ei na madrugada
quando as orações despontam
quando os poemas brotam
antes do esquecimento

haverá, então, algo de mim que me relatarei

catastrofia

mãe
a vida que me deste
usei-a para morrer

quinta-feira, 11 de junho de 2015

sei o pouco que se morre de cada vez 
sei que aos poucos se morre muito
até à totalidade
até à eternidade

quarta-feira, 10 de junho de 2015

súplica

ai,
quem me dera ser
alguém que não sou
e que temo nunca ser

ai,
senhora dai-me a graça
de não me aborrecer
com a desgraça de não ser

ai,
bendita por amor
cumprirei a promessa
aguardarei teu favor

sexta-feira, 5 de junho de 2015

meu amor
não vejo senão a água dos nossos sonhos
corrente de alegria de rio
desmandada  sobre a terra
e nela cava o leito de seu ser

meu amor
não quero senão o mistério dos olhos
os teus que se quiseram meus
neles me alongo para ser maior
o bastante para abarcar o teu olhar

meu amor
não vivo senão o vício de ser amante
esse borbulhar de promessas
fios com que urdimos nosso olhar
a luz maior que nem o sol a alcança

quinta-feira, 4 de junho de 2015

um toque de baton

nada mais
um brilhozinho rubor
a confiança em ser

mãe

mãe
diz-me as horas do dia
diz-me que a noite é dos anjos
faz-me crer que os demónios poderão ser anjos
diz-me que sou o teu filho encantado
faz-me acreditar que as minhas asneiras não são importantes
sorri-me teu beijo de até-amanhã
abraça-me em laço feliz
deixa comigo teu aroma doce a leite e a lavado
amanhã despertarei à luz do teu olhar
vestir-me-ás entre cócegas e abraços
pentear-me-ás de pente molhado
elogiar-me-ás o cabelo forte e rebelde
e far-me-ás orgulhoso de mim mesmo
sentirei segurança no teu olhar
e direi baixinho para mim mesmo
mãe

terça-feira, 2 de junho de 2015

quem morre lutando nunca é derrotado
pode até perder-se todas as batalhas
ser derrotado é render-se e submeter-se

banho do tempo

assassinato é
hipérbole de facto
no subjetivo interpessoal
assassino é um termo da relação
vítima é outro
na vasilha do tempo
todos matam e todos morrem

segunda-feira, 1 de junho de 2015

eucêntrico

embebeda-me este andar por dentro
perscrutando o sentir daqueles
que por mim passam escancarados

ignorando o que mostram pelos olhos
que são montras que escondem da vista de outrem

ignorando que seus andrajos propalam como arautos
mistérios que ainda desconhecem

ignorando que no caminho espalham confissões
que seus passos se derreiam das tristezas e pulam alegria

embebeda-me a história que revelam
e como o fazem: momentâneo sôfrego
há tanto a contar num lapso de tempo

embebeda-me este cruzar de silhuetas que tudo diz
e nada ouve. uma surdez em estado de alma
toda garganta e nada ouvidos

sente-se o que está dentro bem muralhado
de fora protegidos

cor

espero nascer do branco página
para ser um ponto no vazio
depois outro e mais outro
e crescer linha que se eleva
curva e voa
como são as borboletas
na metamorfose coram

ao Eugénio de Andrade

Eugénio
matam-me todas as manhãs
se correm para a tarefa
sem gente

chegas
eu levanto os olhos
há um sorriso para ler
e tantos para escrever

insignificância

sou um homem pequenino
minúsculo

ao pisar-me, uma formiga magoou-me
imenso

nem tanto pelo peso
mas quis passar-me por cima

sábado, 30 de maio de 2015

paz

no canto do teu regaço
o aconchego é seio

teu corpo molda a carícia
o meu agracia

tudo é um pulsar solto
ritmo do peito

tempo é amor

sexta-feira, 29 de maio de 2015

flor do tempo

tomou forma
diminuendo
aroma a preguiça
deslembro-me de tudo
vadio à superfície do vento
conforta-me o sol
repouso as pálpebras
o horizonte é lindo

terça-feira, 26 de maio de 2015

no meu rio o leito paira além do mar
no meu rio espraiar é o destino
no meu rio ser é vocação
no meu rio navegar é ir além da nave
no meu rio viajar é penetrar e deixar-se entranhar pela jornada
em mim rio e navegador são a unidade

quarta-feira, 20 de maio de 2015

escrever

nunca fui, além
desentendia
a luz teimava iluminar
a palavra, eu não via
desvia
enrolada, a linha
era a palavra bordada
esboçando o voo

terça-feira, 19 de maio de 2015

nascimento

todos os sítios
a terra havia
a vida era
um grão a semente
a água o despertou
o pó o havia acolhido
agora sonhava crescer
grande
abria os olhos
um destino imenso
era
o berço
onde firmava os pés e o corpo
largou raízes
para ser
infinito

segunda-feira, 18 de maio de 2015

domingo, 17 de maio de 2015

beira d'água

escrever de água
esse líquido precioso corre-me nas veias
leva-me às margens, às beiras
o limite além do qual o corpo paira

nos beirais os pássaros recitam
e as andorinhas moldam o lar
ante o gotejar

os cisnes bailam nos lagos
e poderiam ser poetas

dos rios afloram os lírios
e colorir-se-ão as beiras

no mar as sereias ondeiam
olhos encantados à beira-mar

escrever de água
não poder aquietar-se
na calma do charco o desejo
é pedra como beijo do despertar

segunda-feira, 11 de maio de 2015

olhar cego

procuro o pôr-do-sol
e não sei

procuro-o no pote d'oiro
e não sei

procuro-o no fim do mundo
e não sei

procuro-o atrás do monte
e não sei

procuro-o na copa das árvores
e não sei

procuro-o ao fundo no mar
e não sei

procuro-o no areal deserto
e não sei

procuro-o no horizonte da cidade
e não sei

procuro-o no recorte da multidão
e não sei

procuro-o atrás das nuvens
e não sei

procuro-o
e não sei

tenho-o no olhar
e não sei

procuro-o

timbres da primavera

a voz de pássaro
fresco azul amanhecer
morno tom entardecer

encanto
a melodia do voo vivo

colorido
a cor bela do movimento

as árvores são o encontro
o céu é fundo
os pássaros permanecem
suspensos nelas

lá se aninham
em ninhos os pássaros são
passarinhos

domingo, 10 de maio de 2015

sonus silentium

a voz do silêncio
articula a palavra
entoa-a
pronuncia-lhe a forma
do corpo, desnuda-a
e a palavra dá-se
ao volume da ideia
a sonância da palavra

sonus silentium

o silêncio
se nos ensoa o nome
estremece-nos

cega ignorância

tanto quanto sei
nada falta quando se desconhece
a inexistência resulta da ignorância
sempre ou quase sempre
deste modo
a inexistência de caminhos é uma ignorância
cega, quase sempre
manifesta-se: não deixa ver

sexta-feira, 8 de maio de 2015

descoberta

a manhã era de sol. o dia, bonito; é assim que o recordo e não me lembro de o ter visto. teria, eu, por volta de 5 anos de idade, estava no quarto de meus pais, na cama aninhado no que restava do aconchego, e minha mãe vestia-se, mirando-se no espelho do psiché. envergava um vestido verde entre o azeitona e o relva - estou a vê-lo - de cabelo preso em puxo e vestia um olhar lindo e estranho que eu não compreendia. alisava o vestido no corpo de forma particular na zona das ancas e da barriga. perguntei um "-- o que foi mãe?" e obtive um "-- nada" com sorriso combinados, em resposta; ficou-me o enigma com a minha memória: tem no centro um olhar e uma expressão de rosto, de corpo, e um ar que guardei sem entender. creio que por isso mesmo a guardei.

entretanto os anos correram às dezenas, duas e meia pelo menos. era tarde, após o almoço de um sábado, no caminho para o bica com a minha família e cumprirmos o ritual de encontro com os amigos no café, a descida do elevador no meu prédio foi interrompida pela entrada de uma vizinha no 6.º andar (podia ser o 7.º) que chegou trajando o mesmo olhar que eu ainda guardava sem conhecer. senti-o e olhei-a com a mesma meninice da primeira vez; ela não deu conta e eu não perguntei nada, mas decifrara-o, apanhei-lhe o significado, o dela e o da minha mãe, e repousei um silencioso "-- estás grávida", ainda antes de todos abandonarmos a porta elevador à sorte da mola que a encerrou na cadência que todos sabíamos.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

onde meus olhos descansam
o horizonte ondulado com leveza
e mais além a infinitude sem linha de recorte

teu olhar
que tanto amo
não entendo porque se demora
em mim - o que vê? - me pergunto

segunda-feira, 4 de maio de 2015

as linhas do meu caderno

no meu caderno, as linhas
risco-as à mão
pouco direitas, rasuro-as
redondos e vértices, emendo-as
tracejos do coração.
e erguem-se, assim as manhãs
e luzem, o tom de sonho
e cruzam-se, são olhares
e escorrem, nem sei de quê.
ingénuas, as linhas
no meu caderno, eu vivo
amargo e adoço
linha a linha, me teço
volta e revolta, me faço.

domingo, 3 de maio de 2015

mãe

doce é a mãe
e o beijo dela
a pele do rosto seu
e o toque no meu
também o colo
regalo do aconchego
e o embalo onde adormeço
guardo-o, eu

doce é mãe
a ternura que me surge
deu-ma ela

quinta-feira, 30 de abril de 2015

o surdo sonha, fala 
e ouve-se, e fala mais alto
e ouve-se mais

invade-o o êxtase, sublime
ouve-se e tanto quer dizer

e o surdo ouve-se
tagarela e é feliz

da pérola

como se agradece a pérola deixada
pelo beijo da entrega
que é dádiva, a maior?

como se cuida a pérola polida
redondo cintilante que toma 
dos olhos o olhar?

e o brilho
que a enche brota nascente
como se agradece a pérola?

quarta-feira, 29 de abril de 2015

sexta-feira, 24 de abril de 2015

entardeço
acosto adormeço
preparo o anoitecer
alcanço
a estrela do sonho
passeio-a e leva-me
ao alvorecer

geometria da noite

a noite
como se desenha a noite?
com um traço, assim
despojado reto
entra nela, por fim
a curva em traçado
de esfera, envolve
isolando
o movimento, só

sexta-feira, 17 de abril de 2015

divagando

i.
a nascente dos dias jorrava-os longos,
infinita,
espremidamente longos

acontecia serem puxados a pulso
por todos os pulsos do mundo

o que os fazia mais longos e desejados

e tomou esta forma, o tempo:
longo e desejado

ii.
segue o patamar da rua empoeirada
abeira-te dos parapeitos
das janelas joga-se a luz de um para outro lado

se o fogo respeita a noite, aquecendo-a
ela gosta
e irmanam-se  pela lareira

iii
o que afasta as pessoas
não é a distância mas a falta dela
a sobreposição e o empurro:
o antes de tudo, o antes de nada, o antes de mais
e o pior, o antes de todos, que a ganância tem

sexta-feira, 10 de abril de 2015

o texto sempre foi mais amplo e mais rico
que o autor e o seu pensamento
o texto enriquece-se nas leitura
por elas se alarga
são elas quem o dizem

ócio em fim de tarde

sabes
a bonomia da tarde
quer-nos a ternura em final de dia
o nome entardecer

olha
o morno ponto
o sol redondo avermelhado
deitado vai-se esconder

sente
o corpo estirado
em banco aberto, acordado sono lento
momento antes de anoitecer

e futuresce, a palavra sedutora,
ela única o poema

a fantasia das palavras

todas as palavras têm sexo
depois do género.
todas as palavras fornicam
ininterruptamente
não suspendem a depravação
de serem o que são. enleiam-se
sem se acotovelarem
desmandam-se no verso
e gritam esparramadamente.
a fúria contínua entranha-se
tomando as palavras que se penetram
viciadas. oh deus!
que derrame, que desalinho
que desordem
se funde fecunda e gera.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

do verso

o verso é o todo uno
cume do viandar
sonho em frase despojada

e flutua, o verso

do poema nada sei

dos versos

recorta, pinta e cola
recola, porta e cinta
recinta, pola e corta
morde a língua, fala só
míngua a lorde, ró de si
empenho e travessura
ou travenho e empessura
o menino vai enchendo o caderno
digo, livro

do poema nada sei

dos versos

um verso in-
verso outro verso
era uma vez o poeta
acontecendo

do poema nada sei

sábado, 4 de abril de 2015

quinta-feira, 2 de abril de 2015

amador

i
amo a dor de me doer
não amo, é o meu amor

ii
saberás
que amar não se sabe
é sabor
indescritível

sobre o vento que passa
sabe-se, já passou por cá
e, sobre tudo voltará,
passando, sempre

quarta-feira, 1 de abril de 2015

viajante

viajo
quando meu comboio descarrilar
terei estrada para correr
e quando esta acabar
serei do mundo, sem chão, para me perder

se deus resultar da preguiça
de entender ou de explicar
o acontecer

a preguiça - a mãe
dos males - pela maternidade
fará deus nascer

e sendo companheira
do ócio pariu o diabo, irmão
de deus e poeta, bom de ver

para onde dirigir o olhar
se a paisagem é ampla
longa e larga, profunda e alta
como a cegueira?

poderá a terra ser árvore?
alçar-se ao céu
pó-de-ser

poderá a árvore ser ave?
devotar-se ao ar, pairar
se erguer

poderá a ave ser chuva?
destinar-se ao chão
chover

poderá a chuva ser terra?
início e fim
viver

ditado

escrevi no pôr-do-sol que me caía no caderno. era meu
sem o ser e senti que poderia escrevê-lo, ou escrever-lhe,
em cima, para nele ficar gravado e ser dele
também.

iludi-me, pensando que seria autor da escrita,
quando era só o motor, a máquina do movimento. a mensagem vinha dele
e apanhando-a eu, tinha de a pôr, não sei a quê,
e fi-lo no caderno sem que pudesse dizer as ondas da areia,
as sombras do areal que o pôr-do-sol me descrevia.

não pude fazer o ditado
e foi neste estado de aluno menino que me mantive,
por isso dei-lhe toda a atenção que tinha,
tudo o que me restava.