sexta-feira, 4 de abril de 2014

sobre o tempo

o lugar era vazio
tudo chegava em vagas
vagas de luz
vagas de ruídos de coisas
vagas de barulhos de gentes
vagas de formas vagas
vagas de mar
compassadas de vai-vem
metrónomo
só o metrónomo enchia o espaço
em batidas, ruídos de casa de avó
o eterno relógio de pêndulo

há um campanário sossegado
pelo compasso das horas
onde a gaivota escolheu poisar
calmamente perscruta em volta
alheia ao tic-tac
que as gaivotas seguem o ritmo do coração

o vento namora as dunas
enrola-se nelas
a areia eleva-se e solta-se esvoaçante
é a folia

adiante a criança experimenta e aprende
agarra a areia que lhe foge pelos dedos
de mão-cheia em mão-cheia compenetra-se
ensaia variáveis que desconhece
mais força, posição da mão
mão parada ou sacudindo
a areia sempre foge entre os dedos
sente o vento, olha o mar, concentra-se na areia da mão
sempre pouca
ignorando tudo o mais que os dedos não agarram
e ensaia e torna a ensaiar
ao ritmo da areia que se esgota das mãos
a primeira ampulheta

discreta ampulheta de vagas de areia
olha o tempo em  movimentos amplos de silêncio

uma vaga de areia
uma vaga de silêncios
uma vaga de memórias de fantasias
quando se cresce para adulto a nossa fantasia fica memória
a ampulheta sabe-o, o metrónomo berra-o
aprendeu-o com o primo relógio
e o relojoeiro, como a criança
desconhecia o invento que tinha em mãos
desconhecia que a vida foge por entre os dedos
como areia, sempre que se aperta na mão
como o tempo, sempre que se lhe conta as batidas
ou as voltas da ampulheta, onde se inicia e termina uma história
que a vida se conta em histórias
que também chegam em vagas

e tudo continua vago
há um minúsculo pedacinho de poeira
ou outra matéria reluzente que atravessa um raio de sol
chamou-me o olhar, que levou a minha atenção
e meu pensamento juntou-se-lhes ao momento de dança
daquela partícula
não lhe sei a forma, a atenção, que era minha , quer-lhe o movimento
aprecia movimentos - danças - emenda-me o pensamento
a tender para a fantasia.
lembro-me criança a sacudir a roupa da cama
e deitado apreciava as partículas dançando entre si
reluzentes, coloridas
olhava-as demoradamente e vi-as num recreio
brincavam inquietas alegres satisfeitas
eu agitava-as com meus braços, cruzando o raio de luz
o movimento multiplicava-se; ficavam felizes
quando eu brincava com elas, e eu também
entendiamo-nos naquele agitar
ora ao ritmo do meu braço
ora ao do rodopiar de uma partícula
ali não havia tempo que se contasse
ali o tempo não se contava
e agora também não
que esta partícula e a minha atenção
desligaram o metrónomo e encheram o momento
de luz, formas e movimento

o tempo é a abóbada dentro da qual nos abrigamos
para ficar perto do altar dos acontecimentos
o chão tem a forma de lago
a cada batida, as ondas do lago alargam-se
em círculos que se estendem para o exterior
a cada batida somos empurrados para a margem do lago
para fora e não sabemos viver sem abóbada
mesmo que esteja vazia
mesmo quando estamos solitariamente sós
ao som do tic-tac, contando vagas, balançando nas recordações
temendo a margem e o lado de lá do tempo e do acontecimento

ao reclamarmos liberdade ao tempo
procuramos que desligue os relógios, pare as ampulhetas
acalme as vagas ao nosso fluir
na verdade queremos aprisionar o tempo
nós que temos uma vaga ideia do que é liberdade.

chega-me um piano soando
vem de longe, trouxe-o uma vaga
chegou e encheu o espaço e domou o tempo
o do metrónomo e sossegou os relógios
embalou os corações e fê-los pulsar
o tempo era outro
(ou não seria tempo)
que interessa o tempo quando a vida é cheia
e um piano cabe na alma
e não foge como punhado de areia
como a vida fechada na mão
e não se escoa por mais que o apertem
ou que lhe definam o andamento
vivace, allegro, andante, adagio
nas teclas recebe a alma que lhe entoa na caixa
e sintoniza peitos
de quem se entrega na música
de quem sente o tempo
sem o dividir, sem o perder, sem o contar

que o tempo é uma leitura humana da natureza
aprendida numa praia à beira-mar
ao ritmo das vagas
contado em punhados de areia
éramos ainda crianças e as ampulhetas serviam para brincar
e cobiçávamos o relógio de bolso do avô.

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